quarta-feira, 17 de junho de 2009

Economicómio VII - O TGV, a decisão, o bom senso, o adiamento


Economicómio VII – O TGV, a decisão, o bom senso, o adiamento

Vou desagradar aos amigos. Vou arvorar-me em defensor do TGV. Os meus amigos economistas vão ser os primeiros a enviar-me para as profundezas dos infernos, por estar a comprometer o futuro dos nossos netos.
Antes de prosseguir, uma pequena explicação sobre a designação do grupo de temas: Economicómio.
Sendo certo que a Economia é a ciência (felizmente não exacta) que trata das nossas coisas, dos nossos assuntos, da direcção da nossa casa ou “oikos”, como diziam os gregos, os meus amigos economistas perdoarão que eu vá buscar a primeira parte da palavra a Economia. E a segunda parte, como a nossa casa mais parece uma casa de loucos, à palavra manicómio.
Na verdade, eu nunca inventei nada, e uma rápida pesquisa mostrou-me que um cidadão catalão já tinha usado esta palavra, Economicómio, para nome de blogue. Mas não encontrei vestígios do dito blogue, e se digo que não invento nunca nada, é para ver se me dão algum crédito, porque o que eu digo já foi dito por outros, mais dignos de crédito do que eu (resultou um bocadinho evangélico, não foi? Esta tradição parabólica…).
Vamos ao TGV.

Primeira observação, o bom senso – Elevam-se os coros de aplauso pelo bom senso revelado. Viva o adiamento para a decisão ser do novo governo.
Na verdade, estou de acordo. Estou de acordo que foi uma decisão de bom senso.
Mas, o que é o bom senso?
O bom senso é colocar 10 kg de ferro numa caixa de papelão e 1 kg de algodão numa caixa igual; fechar as caixas, chegar a uma janela e lançá-las em igualdade de circunstâncias da janela abaixo; o bom senso é dizer que a caixa com o ferro dentro chega mais depressa ao chão.
De facto, Galileu teve imenso trabalho para demonstrar que o bom senso não sabia o que estava a dizer. Teve de inventar aquele esquema do plano inclinado e mesmo assim ainda há muitos cidadãos por aí que utilizam o direito constitucional ao disparate para crer firmemente que o ferro vai continuar a cair mais depressa do que o algodão.
Acham que exagero e é caso raro?
Então digam-me o que acha o bom senso sobre o sacrifício dos pobres gatos: um sádico decide lançar dum arranha céus 100 gatos, mas dá ao bom senso a oportunidade de salvar alguns gatos: ou os atira todos do 7º andar ou atira todos do 20º andar. O bom senso que escolha. O bom senso vai, a correr, todo contente, escolher o 7º andar, e a maior parte dos gatos morre.
Porque, na verdade (continua a influência bíblica, não é?) a probabilidade do gato escapar com vida é razoável se for lançado até ao 4º andar. Mas do 5º até ao 10º tem o intervalo mais perigoso. Porquê? Porque ainda não atingiu a velocidade de queda de equilíbrio e vai às voltas pelo ar sem saber como colocar as patas na melhor posição amortecedora. Depois do 10º andar, o gato tem tempo para atingir a velocidade limite de equilíbrio (i.é, por mais alto que caia, não ultrapassa a velocidade limite por causa da resistência do ar) e, nessas circunstancias, é capaz de referenciar pontos e adoptar a melhor posição para a aterragem. E a maioria dos gatos até se salvava.
Outra vez o bom senso na origem de um desastre…

Segunda observação, o adiamento – sendo o processo do TGV já idoso de anos, deve chamar-se a atenção da opinião pública de que qualquer processo deve ter um planeamento credível sendo monitorizado a intervalos suficientemente curtos, quando comparados com o prazo total do empreendimento. Noutros termos, devemos ter uma planificação onde desdobremos todas as actividades ou grupos de actividades necessárias e interdependentes para que o processo avance e atinja a estrelinha do objectivo. E para onde possamos olhar de vez em quando para ver se é preciso tomar medidas para que as coisas avancem.
Qualquer grupo de técnicos a quem tenha sido cometido um projecto , a sua execução, a sua fiscalização (ou acompanhamento, para sermos mais coloquiais) tem de se basear numa coisa parecida. E se vê no meio da planificação “adiamento por causa das eleições”, só pode ficar vermelho, verde, azul ou uma mistura, conforme o seu código genético específico. A menos que já seja um técnico aderente das técnicas inovadoras de gestão mais apreciadas em Portugal.
O que estou tentando dizer é que a decisão de adiamento, do ponto de vista técnico, de quem está encarregado de atingir o objectivo, é uma decisão tão grave como uma ordem de prosseguimento.
Logo, até o bom senso claudica se partirmos deste pressuposto.
Mas não temos em Portugal a cultura do planeamento… por isso a opinião pública não ligará muito ao que eu digo…”vai-se fazendo”, “logo se vê”, “temos tempo”…

Terceira observação, critérios para tomada de decisão – avançar ou não avançar com o TGV, esta é a questão (claro que não é, mas dramaturgicamante faz grande efeito pôr a questão). Ora, reunindo um grupo de técnicos para analisar um projecto ou empreendimento, os coitados, se aplicarem aquilo que lhes ensinaram, fazem uma análise multi-critério. Numa análise multi-critério entra, para além doutras, a análise custos-benefícios.
Dizem alguns dos nossos decisores/gestores e o bom senso também que é muito dinheiro (nisso têm razão, está tudo muito caro apesar do petróleo barato; ainda por cima as orçamentações fazem-se sempre por baixo, para não assustar os decisores/gestores, e depois vem o Tribunal de Contas queixar-se de derrapagens…) e por isso nos devemos conter.
Porém, para que serve o TGV?
Resposta: é o modo de transporte para distancias entre 300 e 1800km (Porto-Lisboa, Lisboa-Paris) em rede europeia.
É o mais competitivo nesta gama de distancias?
Resposta: não tem que ser (lá vão os amigos economistas mandar vergastar-me).
Porquê?
Porque o modo de transporte TGV existe para satisfazer o direito à mobilidade na condição de que esse exercício ofenda o mínimo possível o ambiente (menor consumo específico de combustíveis fósseis por passageiro.km e menor produção de gases com efeito de estufa por passageiro.km).
Evidentemente que os meus amigos economistas vêm dizer-me cheios de razão: para pôr o TGV a andar não é só o investimento, é a exploração de empresas de pessoal intensivo e a manutenção cara (ainda não se falou do calcanhar de Aquiles do TGV em Portugal: a manutenção da via férrea tem de ser impecável porque senão só poderá andar com limitação de velocidade). Logo, o meio de transporte mais competitivo é o avião.
Será.
Mas deixa de ser se afectarmos um valor e um custo ao direito à mobilidade em ambiente sustentável. E esse valor é um custo para o avião e um benefício para o TGV. E pode fazer-se. A teoria económica moderna fez imputações mais mirabolantes. Lembram-se daquela anedota do turista que deixou um depósito de 100 euros no hotel enquanto dava uma volta na cidade para decidir se ficava ou não? O gerente do hotel pagou uma divida ao fornecedor do talho, que pagou uma dívida ao fornecedor do gás, que pagou uma dívida à senhora da peixaria, que pagou uma dívida ao electricista, que pagou uma dívida à senhora escort, que acorreu ao hotel a pagar a dívida que lá tinha. O turista regressou e decidiu partir para outra cidade, levando os 100 euros.
A teoria económica moderna diz que o volume de moeda em circulação aumentou ali 6 vezes (oops, que pressão inflaccionária; o que vale é que o petróleo está barato; e depois admiram-se do Lehman Bros e dos off-shores).
Então deixem-me imputar como custos do modo de transporte avião os prejuízos ambientais quando comparados com o TGV, correspondendo ao usufruto do direito à mobilidade (de silogismo em silogismo, poderíamos concluir que quem se opõe ao TGV está a coarctar o direito à mobilidade. Cuidado com a Declaração dos Direitos do Homem. Mas talvez fosse uma visão fundamentalista). O que me parece essencial aqui, para além duma análise de custos-benefícios que na realidade não está ao alcance do bom senso, nem parece estar, pela amostra dos argumentos que lhes ouvimos, ao alcance da maioria dos decisores/gestores (não me acusem de falta de humildade; não me ouvem perorar sobre nanobiologia molecular, nem futebol, nem semântica, nem literatura japonesa e jarros de cerâmica da dinastia Minamoto) é a aceitação dos domínios de aplicação dos diferentes modos de transporte.
A uma gama de distâncias definida, corresponde um modo de transporte preferencial.

Quarta observação, a experiência anterior dos gestores/decisores – trata-se dum factor preocupante. Tomar decisões correctas sobre modos de transporte não parece ser o forte dos nossos políticos (assim como assim, estou a recordar-me daquele parecer do arquitecto Pancho Guedes sobre os políticos e as cidades, mas não falemos agora das torres de Santos). Lembram-se do caso da Ota? Muitos dos decisores da localização do aeroporto na Ota estão agora também na pole position da decisão sobre o TGV. E o bom senso já está aplaudindo… o que pode significar proximidade de desastre. Quando a Força Aérea estudou as bases aéreas para acolher as esquadrilhas dos F-16, concluiu que a Ota tinha as piores condições meteorológicas e aeronáuticas e decidiu dispensá-la. O governo da altura achou que era um sítio óptimo para implantar um novo aeroporto (terá sido uma análise exclusivamente económica–um aeroporto pouco amigável e pouco funcional, mas barato - que me perdoem os meus amigos economistas). Mais tarde perguntaram à senhora ministra do ambiente se a localização na margem sul tinha inconvenientes ambientais (como se sabe, qualquer localização, seja do que for que seja artificial, tem inconvenientes ambientais, ou as enguias não tivessem metamorfoses), a senhora respondeu que sim (não lhe perguntaram se a Ota tinha inconvenientes) e veio a ordem: para a Ota, rapidamente e em força.
É uma pena, apesar de todos os prós e contras, a opinião pública não ter ficado com esta história esclarecida, quanto mais não seja para não ir sucessivamente embarcando em enganos.
(Dado que não sou especialista de aeronáutica nem de meteorologia, informo que a fonte das informações dessas especialidades é um colega técnico da Força Aérea, cujo relato se encontra na revista da Ordem dos Engenheiros, Ingenium; poupem-me por favor o trabalho de pesquisar o número da revista).
Conclusão desta quarta observação: que confiança pode ter-se em decisores que tão mal decidiram no caso do aeroporto, com os atrasos de todos conhecidos?

Quinta observação, a falta de dinheiro – Estou inteiramente de acordo que muitos dizem que não há dinheiro. Pode ser, como dizem muitas vezes os italianos e os brasileiros. Pode ser que seja preciso ficar a pagar empréstimos até à 5ª geração. Fizemos isso com as obras ferroviárias do Fontes Pereira de Melo, sendo eu a 4ª geração. Acharam mal? Eu confesso que me pareceu normal. Além disso a nossa bem amada tia de Bruxelas já adiantou verbas; não vão querer devolvê-las, pois não? E têm mesmo a certeza de que não há dinheiro? Quanto é que os portugueses gastaram ou comprometeram com automóveis ligeiros (considerando como ligeiros os Tuaregs, os X5, os Lamborghinis, Porches, Bentleys, Aston-Martin e Jaguares, claro) no 1º trimestre deste ano? Terão sido cerca de 4.000 milhões de euros (bolas, até parece uma conta salvadora do Lehman Bros) ? Como sabem, o transporte individual é um modo de transporte poluidor, que afecta gravemente a qualidade de vida nos centros populacionais e que não é o preferencial para os objectivos de transporte que serve, que é o de contribuir para a produção de bens úteis cativadores ou economizadores de divisas. Acham mesmo que não há dinheiro?

Sexta e última observação, que fazer para tomar decisões correctas? – Como não sou guru de gestão, o que eu costumo fazer quando me põem perguntas destas é propor a leitura de um livrinho escrito pelo colunista-comentador da bolsa da New Yorker, James Surowiecki, “A Sabedoria das Multidões”, e a aplicação dos métodos participativos e alargados de tomada de decisão que lá vêm descritos. Leiam que vale a pena. Talvez um dia eu faça um resumo.
Como não posso saber tudo nem consigo apreender tudo, tenho ainda esperança de que um senhor sociólogo de que começa agora a falar-se muito, Herbert Kindler, também possa ajudar. Vou ver se arranjo o livrito dele, “Risk taking”, precisamente sobre os critérios a utilizar nas análises e tomadas de decisões. A ver vamos. Se alguém souber pormenores, diga se acha que possa ajudar. Pode ser que as nossas fracas vozes cheguem lá acima. Nunca se sabe.

2 comentários:


  1. Ainda consegue ter amigos economistas?
    Eu cá não, mas também não consigo perceber o motivo.
    Talvez seja defeito meu.
    Ou será que é por ter dificuldade em interpretar o divino?
    Talvez seja mesmo por falta de critérios para efectuar análises e tomar decisões.
    Mas um dia mudo, por mais que não seja de feitio.

    DPVL

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  2. Carissima DPVL
    Mas não é economista?
    Sinceramente, pensei que sim.
    Não se preocupe em interpretar o divino. Interprete o humano porque até já demonstrou que é capaz disso.
    Participe também na pesquisa do livro do Kindler, se me permite a sugestão, claro.

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