segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

A Marinha Grande em 18 de Janeiro de 1934

Peço desculpa por comemorar assim a revolta da Marinha Grande. Não é bonito contar histórias de família, mas gosto muito desta história.
Um senhor jornalista do século, que militava no partido anarquista, decidiu juntar o trabalho ao prazer, desafiou a mulher e alugou logo de madrugada um táxi que o levou à Marinha Grande.
O burguês de Lisboa emocionou-se em contacto com as massas anarco-sindicalistas e comunistas que exprimiam muito claramente a sua oposição a Salazar, numa altura em que era viva a segunda republica espanhola (sabiam que a primeira republica espanhola viveu de Fevereiro a Dezembro de 1873?).
Mas o gauleiter de Leiria tinha experiencia militar e as forças da legião portuguesa acorreram triunfantes, nas suas camionetas de caixa aberta de recorte sinistro.
O jornalista, a mulher e o motorista de táxi retiraram para uma pequena povoação ali perto, na estrada para Leiria, Maceira Liz, onde funcionava a fábrica de cimento fundada pelo tio do senhor Champalimaud, que ainda não era o principal accionista porque o tio era vivo.
O tio, o senhor Henrique Sommer, cujo nome ficou mais conhecido pela disputa jurídica em torno da sua herança, de que saiu vencedor o senhor Champalimaud como “mais capaz” para a gerir, era um exemplo do capitalista esclarecido do princípio do século XX.
Na Maceira foram construídos alojamentos para todos os empregados, capela, posto de enfermagem, farmácia, cantina, estádio de futebol, campos de jogos e cinema.
Os bairros estavam organizados de acordo com o estatuto do funcionário, desde as casas modestas em banda para os trabalhadores de menor qualificação, passando pelas mais arrebicadinhas - também em banda, com duas colunatas e um pequeno telheiro à entrada, como Raul Lino gostava - para, por exemplo, a enfermeira-parteira, até ás moradias geminadas para os engenheiros - com telhados quase verticais de ardósia em estilo alsaciano, que o senhor Henrique Sommer era originário da Alsácia - e as 3 moradias isoladas para os directores.
E foi assim que, noite dentro, um vizinho delator – que, desgraçadamente, a delação é um hábito desagradável neste país - viu o jornalista, a mulher e o motorista de táxi a entrar na casa da enfermeira-parteira.
Telefonou ao pequeno gauleiter da terra e este ao gauleiter de Leiria que enviou um grupo de legionários armados a casa da enfermeira-parteira para prender os comunistas fugidos da Marinha Grande.
A enfermeira-parteira ficou brava e pôs os legionários na rua aos gritos. Que nunca se tinha metido em política nem nunca se iria meter (e nisso estava a dizer a verdade) e que parecia impossível já não poder receber em casa, em sossego, a própria irmã e o marido (o que também era verdade) que, coitados, estavam tão contrariados por o táxi ter tido uma avaria no caminho e por isso tinham chegado tão tarde (o que já não era verdade).
Deu-se a circunstância de, 11 anos depois destes sucessos, eu ter nascido numa daquelas casas geminadas de telhados negros quase verticais, ainda o meu pai não tinha sido posto na prateleira pelo senhor Champalimaud (mas com bom ordenado, que o senhor Campalimaud nisso não era sovina), por ter feito aquela rábula que se contava muito do senhor Champalimaud, que gostava que lhe aceitassem os convites imediatamente e o meu pai disse que ia pensar três dias.
E a enfermeira-parteira era a minha mãe.
Desculpem o sentimentalismo, que querem, uma pessoa não é de pau nem de ferro, e é uma maneira como qualquer outra de homenagear os revoltosos da Marinha Grande e os cidadãos e as cidadãs que querem trabalhar em paz e sossego.

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