domingo, 31 de janeiro de 2010

O secretismo, o ordenamento territorial e um problema de Fermi

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O secretismo
O secretismo, como falado em 24 de Janeiro passado a propósito, por contraste, da política de divulgação do Dr Fernando Pádua, é algo muito querido em Portugal por muitos gestores e decisores.
É uma manifestação de falta de respeito pelos concidadãos baseada num sentimento de superioridade e de eleição (infelizmente, às vezes até são mesmo eleitos, ou nomeados por eleitos).
É também um desvio relativamente à directiva europeia de direito dos cidadãos à informação.
Custa aos eleitos que têm acesso à informação partilhá-la e assim, perder vantagem competitiva (adam smithismo puro).
Escrevo isto a propósito do deslizamento de terras na CREL, assunto bem dentro da problemática dos transportes.
Quase uma semana depois do acidente, consegui encontrar nos meios de comunicação social uma fotografia, que me permitiu localizar com mais precisão o deslizamento.

A localização do deslizamento de terras
As primeiras informações referiam entre o túnel de Carenque e o nó de Belas (ca 1800 m). A fotografia com o aqueduto ao lado permite referenciar o local como 30º46’53”N e 9º14’46”W.
Verifica-se no Google Earth (imagem com 2 ou 3 anos) que estamos junto de uma encosta com um desnível de cerca de 75m (ca de 25 andares) entre a cota da CREL e o cimo da serra (junto da subestação de Carenque da REN ).
Cerca de 100 m para sudoeste do local do acidente, vê-se um tratamento da encosta (escavação com projeção de calda de cimento) e o que parece uma vala alargada de drenagem que se prolonga para sudoeste, adjacente à via, por cerca de 360m . Aparentemente drenaria de SW para NE, para a tal zona escavada, onde termina a vala alargada de drenagem.
Pela encosta acima vêem-se postes de alta tensão e falta de vegetação que possa suster as terras e combater a erosão. Aliás, o limite sul do deslizamento coincide com uma massa de vegetação.
Dada a antiguidade da imagem, não identifico o local de despejo de terras provenientes de obras.
Embora o secretismo à portuguesa mande os gestores dizer, com muito sentido de responsabilidade (segundo o conceito português, também), que só podem saber-se as causas depois do inquérito concluído (não é isso que diz a Sabedoria das Multidões, a propósito da busca do submarino Scorpion; além de que o tempo que leva a fazer o inquérito desmobiliza a atenção da opinião pública, veja-se o caso do acidente de Novembro de 2009 com os carros oficiais do secretário geral da segurança e do presidente da Assembleia da Republica; noutros casos, como no acidente com o autocarro na A23, a sentença do tribunal indicia um mau entendimento ou uma impossibilidade legal de dar prosseguimento ao relatório técnico), é legítimo colocar a hipótese de que as circunstancias anteriores (deficiente drenagem ao nível da via e ao longo da encosta, ausência de vegetação, pressão das novas terras, até o recente sismo tendente a desagregar as terras) contribuíram, em conjunto com a elevada precipitação, numa ou noutra medida, para o resultado final.
Foi uma sorte não ter havido vítimas.
Não vale a pena, penso eu, procurar culpados e pô-los no pelourinho (outro conceito bem português). Vale a pena continuar a trabalhar na remoção das terras e na reposição das vias em condições de segurança, determinar em profundidade as causas e as circunstancias, e aplicar as recomendações resultantes para evitar ou minimizar a repetição do acidente.

O dever de um operador de transportes zelar pela segurança interna e externa das suas vias de transporte
As primeiras notícias davam conta de um porta voz da Brisa com muita inocência a deitar as culpas para o dono do terreno, que o incidente tinha vindo do exterior para o interior e não do interior para o exterior. E , dias depois, o senhor porta voz insiste em “responsabilizar” o dono do terreno.
Recordo a propósito um incidente comigo na A2, na descida para a saída de S.Bartolomeu de Messines ao km 225, no sentido N-S. Em consequência de muita chuva, terra argilosa das encostas adjacentes (que tinham sido cortadas mas não estabilizadas) deslizou para as vias e formou uma camada escorregadia no pavimento. As rodas do meu carro perderam a aderência, em claro fenómeno de aqua planning, mas consegui manter o carro na via. Vários carros estavam despistados na vala de separação central, porque nessa altura, há cerca de 10 anos, não tinha ainda sido montado o separador central (a auto-estrada foi inaugurada sem separador central, o que constitui outro exemplo de convencimento, com um acidente mortal por despiste na vala de separação central no próprio dia de inauguração) .
Formalizei junto da Brisa um pedido de informação sobre as medidas que tinha ou planeava para mitigar os riscos de escorregamento de terras para as vias e de melhoria das condições de drenagem das valas laterais.
A Brisa, lamentavelmente, porque publicita a segurança como a sua prioridade, rejeitou com sobranceria a prestação de informações completas, declinando qualquer responsabilidade no incidente. No local apenas limpou as valas de drenagem (claramente subdimensionadas para grandes precipitações). Noutras zonas da autoestrada, porém, executou importantes obras de consolidação das encostas. Na descida para S.Bartolomeu, porém, mantem-se o perigo em dias de chuva.
Quero com este exemplo chamar a atenção para que uma empresa de transportes tem de estar atenta ao que se passa na envolvente das suas vias. A construtora dos novos troços do IC 16 e IC17 acumulou grandes quantidades de terra retirada dos novos traçados junto do percurso do metropolitano entre as estações de Alfornelos e Amadora Este. E um amigo meu que trabalha no metropolitano foi lá ver se o peso das terras interferia com o túnel.
Havia alguma probabilidade de interferir. Quando o empreiteiro que construiu o Hospital da Luz começou as escavações para as fundações, o desaterro e a subsequente diminuição da pressão sobre o túnel provocou uma elevação da altimetria da via férrea do metropolitano. O meu amigo teve de lá ir a correr suspender a obra, que só recomeçou depois de tomadas as devidas medidas de prevenção e correcção.
Não posso concordar que o dono do terreno em Carenque tenha despejado terras sem os cuidados devidos, mas também não posso concordar com o desleixo da Brisa que não exerceu a devida vigilância sobre as condições de segurança da envolvente.

O ordenamento do território (ou a sua ausência)
Além do mais, tudo isto revela a ausência de planeamento territorial desde há muitos anos. Toda a região de Belas, que era também uma aprazível zona suburbana de recreio, foi vítima da pressão da afluência demográfica dos anos 60, com a explosão imobiliária anárquica, sem planeamento integrado, com a ocupação do terreno sem regras que não fossem o improviso, com o abandono de outras habitações, de industrias, de terrenos agrícolas, como se pode ver à beira da estrada de Belas.
Nestas circunstancias, é natural que acidentes como o deslizamento de terras aconteçam. Esperemos que não se insista na culpabilização, mas que se trabalhe conjuntamente para se evitar a repetição deste caso, em Carenque e em qualquer lugar.
Quase por milagre, na zona de Carenque, ao longo de todo este tempo, sobreviveram coisas como os vestígios das pegadas de dinossáurios, mesmo por cima do túnel da CREL, de antas e necrópoles neolíticas, um pouco a sul, na encosta do deslizamento, a quinta do senhor da serra em Belas, com as suas janelas manuelinas, alguns troços do aqueduto das águas livres… nem tudo é mau, no nosso país.

Um problema de Fermi
E chegado a este ponto, ensaio um problema de Fermi (esquecido do que é um problema de Fermi? ver o blogue do dia 2009-10-29, ou o de 2009-11-04, por exemplo) .
Estimando em 600.000 m3 a quantidade de terra que escorregou para a CREL, que numa semana foram retirados 50.000 m3, que as terras continuam a deslizar a uma velocidade de 5 cm/semana apesar de não ter voltado a chover significativamente, calcular ao fim de quanto tempo é que a CREL reabrirá.
Bom, segundo leio nos jornais (tal como li os números acima) a retirada de terras está sendo feita 24 horas por dia e será difícil aumentar o seu rendimento. Mas admitamos que vai ser possível retirar o excesso de terras em 10 semanas, que a partir da 5ª semana já é possível construir os muros de contenção (ou pregagens, ou ancoragens, ou os gabiões, o que os técnicos da especialidade melhor seleccionarem) que serão executados em 5 semanas, coincidindo com o prazo das 10 semanas para retirada de terras, e que depois são precisas mais 5 semanas para execução de valas de drenagem, para aliviar a pressão sobre as terras quando chove, e para conclusão da reparação e consolidação dos pavimentos das vias que talvez possa começar também à 5ª semana. Não esquecer, antes de reabrir, instalar um sistema de monitorização para vigilância dos deslizamentos dos terrenos envolventes e da estabilidade dos pavimentos da CREL.
Tudo somado dá, para este problema de Fermi, cerca de 15 semanas, ou 3 meses e meio para reabertura da CREL. Lá para os idos da primavera, fins de Abril (feliz ficaria eu se me enganasse).
A ver vamos. A mim me parece que deveria ser a Brisa a resolver o problema de Fermi, que têm para isso mais elementos, mas eles fecham-se naquela de que de momento não há condições para estimar prazos… são talvez as dificuldades que há em Portugal para fazer planeamentos… são os decisores políticos que definem os prazos, não são os técnicos. É uma pena.
Mas não culpem este ou aquele pelos prejuízos, culpem o secretismo dos projectos feitos à pressa e sem debate alargado, culpem a falta de ordenamento e planeamento territorial, culpem o secretismo da informação, culpem os prazos políticos das obras de fachada… ou culpem simplesmente este vício de dizer mal…

E outro problema, talvez não de Fermi
Seria interessante aproveitarem-se os hipotéticos 3 meses de interrupção do serviço da CREL para avaliar:
- o fluxo de tráfego de passageiros que circulavam pelo troço afectado, com destino a Lisboa,
- a percentagem desse tráfego que poderia ser canalizado para percursos em transportes colectivos existentes e projectados
- o fluxo de tráfego de passageiros que circularia pelo troço afectado, com destino a Lisboa, se já estivessem concluídos todo o percurso e nós de ligação da CRIL
- a percentagem deste tráfego que poderia ser canalizado para percursos em transportes colectivos existentes e projectados
Confesso humildemente não dispor de elementos para estas avaliações, parecendo que seria necessário actualizar os inquéritos à mobilidade na área metropolitana de Lisboa, conforme programação do MOPTC (ultimo inquérito oficial realizado pelo IMTT: 1998) ou por iniciativa de operadores de transportes.
Será provavelmente um método de avaliação das necessidades de percursos de transportes colectivos, ir cortando troços dos percursos rodoviários e ver como os transportes colectivos poderiam suprir os percursos interrompidos.
Foi isso que fez a GNR no próprio dia, sugerindo as alternativas rodoviárias.
E as alternativas ferroviárias? Eis mais um exemplo da ausência do ordenamento do território.
Eixos, ou raios, de penetração: Linha de Cascais, Linha do Oeste/linha de Sintra, Linha do Norte/Linha da Azambuja, e ficamos por aqui.
Por parecer existirem poucas alternativas ferroviárias aos percursos de que faz parte o troço afectado, não poderemos tirar deste incidente a conclusão de que a linha de metro ligeiro Algés-Falagueira-Odivelas-Loures-Sacavem, equivalente ferroviário entre a CRIL e a CREL, tem justificação na mobilidade na área metropolitana de Lisboa, intersectando os raios de penetração em nós de correspondência multi-modal com parques de estacionamento “park and ride”? (mas, por favor, em viaduto e com cruzamentos desnivelados para evitar acidentes).
Teremos então, neste momento, os percursos rodoviários sobredimensionados e os percursos ferroviários subdimensionados.
Aguardamos o inquérito à mobilidade?

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