sexta-feira, 5 de fevereiro de 2010

Arquitectorium 5 – Catilinária contra o novo museu dos coches















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Estou a cumprir o prometido no blogue de 21 de Dezembro passado, a propósito do Museu de Arte Popular.
Contente, eu, por o ministério da cultura ter salvo o museu de arte popular da demolição, mas receoso pelo museu dos coches.

DITOSO PROJETO

Cumpriram-se as ameaças da senhora ministra da cultura e foi lançada a primeira pedra para o novo museu dos coches, nos terrenos imediatamente a nascente da praça Afonso de Albuquerque, sítio de antigas oficinas do exército.
Foi apresentado com muita pompa e alguma circunstancia o projecto de um senhor arquiteto brasileiro.
O projeto foi louvado pelo senhor arquiteto Siza Vieira.
E, como diria Marco António no seu discurso no Julio Cesar de Shakespeare em:

http://www.youtube.com/watch?v=n9gnHpJt68M&feature=related ,

tão ilustres cidadãos não iriam enganar-se na apreciação de que é um bom projecto.
Nem o grupo de trabalho da frente ribeirinha, expressão da pluri-disciplinaridade que valoriza cada vez mais o contacto de Lisboa com o seu rio, iria atraiçoar os seus objectivos; nem muito menos a senhora ministra da cultura ou o senhor primeiro ministro permitiriam que um grupo de frustrados bloqueassem o ditoso e formoso projeto com uma petição on line de ambiciosos despeitados como é qualquer um que não compreende as virtudes do projeto.

O GOVERNO INVOCA AS FORÇAS DIVINAS PARA VENCER A OPOSIÇÃO AOS SEUS DESÍGNIOS

“Deus sabe as dificuldades para que este dia pudesse ser o dia de arranque da construção do novo Museu dos Coches”.
Assim começou o seu discurso o senhor primeiro ministro. Assim fica associada à iniciativa governamental a entidade divina. Assim se manifesta a compreensão da divindade pelos sacrifícios que os governantes fazem para, finalmente, aproximarmos os gastos com a cultura do valor fetiche de 1% do PIB.
Se cultura é o que fazemos quando nos libertamos das tarefas penosas de prover a subsistência e os meios essenciais à vida, os 99% justificam o 1%.
E mais uma vez a verdade nos ilude. Se o PIB são 160 mil milhões de euros, 1% são 1 600 milhões de euros e o novo museu dos coches só vai custar 32 milhões de euros, na sua maior parte drenados das contrapartidas do casino Lisboa (ai que falta de confiança me desperta esta linguagem de contrapartidas…é coisa que não tem o meu voto como munícipe… nem tão pouco acredito que o novo museu dos coches só custe aquele preço).

CRITÉRIO DE AVALIAÇÃO DO MUSEU MAIS DIGNO DE TER UM NOVO E GRANDE EDIFICIO

E depois os governantes fundamentaram o projeto. O terreno é do Estado. O museu dos coches é atualmente o museu mais visitado. Logo, na sua nova forma vai atrair 1 milhão de visitantes por ano em lugar dos 200.000 atuais.
Não há cidadão que resista a esta argumentação e o ministro das finanças agradece.
A menos que seja embirrento como eu.
Sabem por que é o Museu dos Coches o mais visitado?
Porque é o de visita mais rápida (declarações de uma especialista de turismo, que não leva os turistas ao museu de arte antiga por dificuldades de estacionamento).
Que outros museus há em Lisboa e que são menos visitados do que o dos coches?
O de arte Antiga? (100.000 visitantes por ano?).
O tal que tem quadros do Bosch e dos Brueguel que despertam os piores sentimentos de inveja dos principais museus da Europa? O painel de S.Vicente e o Ecce Homo que são a nossa carne? (vêem como também sei falar biblicamente? se bem que mais para o novo testamento). E que precisa desesperadamente de se expandir para um novo edifício de raiz.
Engraçado, critérios economicistas a decidir qual o museu que vai ter um novo e grande edifício…a que ponto chegámos, a ver se este museu merece mais ou menos do que aqueloutro.
Mas não importa, as agencias de viagens despejam os turistas na praça do Império, há sítio para deixar os autocarros, Jerónimos a correr, vamos ao padrão dos descobrimentos, volta-se pelos pasteis de Belem, é o que o senhor presidente da republica come sempre à sobremesa quando tem convidados, passa-se pela frente do palácio do senhor presidente, atravessa-se a rua e está-se no novo museu dos coches.
Não vale a pena ir ao museu da Arqueologia nos Jerónimos, aliás disse-se adeus de longe ao guerreiro luso de escudo redondo que usa a barba como eu; não vale a pena entrar e então no da Marinha muito menos (ai se os USA pudessem fazer uma história da sua marinha com mais de 250 anos…).
E aí está, o museu da Arqueologia é para sair dali, dos Jerónimos; vai para a Cordoaria.
A ideia é boa, mas a experiencia diz que adaptar um edifício como a Cordoaria a museu de Arqueologia não é bom. Ver em:

http://www.publico.pt/Cultura/novo-museu-de-arqueologia-podia-ser-mais-barato-do-que-mudanca-para-a-cordoaria-diz-director_1365887

O NOVO MUSEU DO PASTEL DE NATA

Ah, mas eu disse pasteis de nata?
Quantos visitantes tem a fábrica de pasteis de nata?
250.000?
O dobro dos visitantes do museu de Arqueologia e mais do que os 200.000 dos coches?
Ganhou, tem direito ao edifício novo, e o projeto do senhor arquiteto brasileiro afinal vai para ser museu e fábrica de pasteis de nata.
Sim, o pastel de nata fabrica-se em Macau, em Coloane, em Nagasaki, em Hong Kong, em New Bedford.
Não concordar com a ideia do museu do pastel de nata é atraiçoar toda a expansão ultramarina.
Ficariam outra vez os coches onde estão, no picadeiro que não pode ser picadeiro porque as piruetas, as capriolas e as corvetas dos cavalos abanam muito? (será que o projeto do senhor arquiteto brasileiro também prevê um picadeiro para concorrer com os lipizanni? Os turistas iriam gostar muito e os cavaleiros tauromáquicos, se continuam a dizer mal das touradas, tinham aqui um belo campo de manobra).

PELO “MARKETING” É QUE VAMOS

E continua a argumentação do “marketing” ministerial: o edifício onde funciona o atual museu dos coches «poderá manter alguns coches e peças da colecção e ser uma sala de recepção».
Repare-se no delicado articular da palavra “poderá”.
“Poderá” pode agora poder para os cidadãos ficarem tranquilos, mas passados uns anos poderá já não poder, sem consequências porque os cidadãos já se esqueceram do “poderá”.
É a velha técnica da promessa indefinida para uma manhã de nevoeiro e o desengano mais tarde, perante o facto consumado.
Reparem na fotografia da sala de exposição atual. Depois comparem com a sala prevista. Não acham que os coches estão bem onde estão?
Agora vejam a argumentação do projetista do novo museu: “a questão cenográfica deve ser abolida” (dito de uma forma menos intelectual, os coches devem ser retirados do ambiente do século XVIII em que estão e ficar entre paredes brancas).
Nenhum curso nem nenhum percurso profissional de arquiteto incensado podem legitimamente impedir qualquer cidadão de dizer: discordo.
Discordo deste ambiente de linhas direitas, paredes nuas e buracos retangulares lá em cima.
Deixassem os coches onde estão, se possível melhorando a sua manutenção que parece não estar famosa.
Assuma o governo a violentação estética: podemos e queremos que seja assim, porque queremos ganhar dinheiro com o turismo; não diga que é um serviço prestado à cultura.
Temos legitimidade e queremos rentabilizar os terrenos a norte do edifício do atual museu dos coches, para onde ele poderia expandir-se, mas não queremos expandi-lo para lá, e por isso queremos um novo museu dos coches do outro lado da rua, a sudeste.
Mas continuemos com o “marketing” governamental oficial que o que escrevi atrás não é oficial:
“O auditório do novo Museu dos Coches é também um instrumento de sedução de novos públicos. Para além de ser um espaço de apoio à restante programação do Museu, terá ainda condições para receber conferências, seminários, congressos, ou para o visionamento de filmes, clássicos, ou de última geração, com imagens tridimensionais.”
Numa escala de provincianismo novo rico, proponho a classificação desta prosa como grau máximo. Vamos encher o novo museu com fans do Avatar, do 3D e dos jogos de vídeo.
Os cidadãos deveriam ser poupados a esta propaganda, porque é agressiva (ou serei eu que sou demasiado sensível?).
E ainda o “marketing” do projetista: “imaginei o edifício levantado do chão para não ocupar totalmente o terreno".
E nós imaginamos que todos os arquitetos do mundo de todos os tempos têm imaginado o quê? Edifícios não levantados do chão? Os cromeleques do Alentejo do “Levantados do chão” não foram levantados do chão? Não têm uma insustentável leveza? E os pilares dos templos egípcios e babilónios, os pagodes do oriente, os arcos românicos e góticos são o quê? Foi descoberta a pólvora agora para enganar os cidadãos?

QUESTÕES DE ARQUITETURA E DE ESCOLHA DE ARQUITETOS

Foi o projeto louvado pelo arquiteto Siza Vieira, apoiado por Gonçalo Byrne .
Vamos ter de seguir a lógica do “magister dixit”?
Vamos continuar a suportar as opções dos grandes vultos da arquitetura?
Vão os gestores da coisa pública continuar a escolher nomes grandes para as suas obras sem concurso público?
Não acreditam os gestores da coisa pública que, por serem gestores da coisa pública, não deve haver nomeações e escolhas mas sim concursos públicos, que podem começar por ser simples concursos de ideias abertos (concordam que por serem concursos de ideias as propostas concorrentes devem ser remuneradas?).
Dos dois nomes que citei, um deixou uma estação de metropolitano com graves deficiências de exploração (percursos desnecessariamente longos para chegar ao comboio) e dificuldades de manutenção (limitações da ventilação, peso excessivo de tetos falsos); o outro é o arquiteto do “coiso conspícuo” que substituiu o hotel Estoril-Sol (blogue do dia 6 de Outubro de 2009:  http://fcsseratostenes.blogspot.com/2009/10/arquitectorium-4-o-coiso-conspicuo.html).

QUESTÕES DE TRANSPORTES

Diz o projetista do novo museu dos coches que teve de retirar o auto silo (vê-se na foto da maqueta) junto do Museu da Eletricidade porque a CML achou mal.
Talvez estivesse mal, embora a arquitetura de um silo auto possa ser uma boa peça de arquitetura.
No entanto, se a estratégia é valorizar a componente museológica da zona e atrair grande volume de pessoas (apoio, a sério), deverá substituir-se o silo auto por um plano alternativo de transportes eficiente (silo auto significa tráfego de automóveis), não limitado aos autocarros de turistas e incluindo reforço de linhas ferroviárias.
É este conceito da necessidade de equipar qualquer zona de uma cidade com uma rede de canais de transporte eficiente que falha aos decisores… (que tal disfarçar o silo auto mais para junto da rua da Junqueira, assim como assim , um silo auto pode ficar parecido com um centro Pompidou - conhecem a história dos gastos astronómicos com a reparação dos erros de projecto associados à falta de previsão das condições de manutenção do edifício que o centro Pompidou exigiu poucos anos depois da inauguração? – e deslocar um dos edifícios do novo museu para junto do rio e do museu de eletricidade? Já que não podemos fugir ao novo museu dos coches…).

EPÍLOGO

Mas concordo com o projetista quando diz:
"A cidade é feita com casas, você não consegue fazer uma cidade só com monumentos. Haverá de ter os seus monumentos e museus, mas a cidade é feita de alarido de crianças, escolas, transportes públicos eficientes. Tudo pelo bem-estar e felicidade. O homem aflito não vale nada."

Não nos aflijamos, pois, e continuemos; sugiro que vejam este blogue de um arquiteto, com fotos esclarecedoras:

http://abarrigadeumarquitecto.blogspot.com/2009/03/novo-museu-nacional-dos-coches.html

e, se acharem, embora já seja uma causa perdida, que vale a pena reforçar a expressão do desacordo, assinem a petição contra o projeto do novo museu dos coches (não confundam que já há uma a circular a favor, com a assinatura dos grandes da arquitetura nacional):

http://www.gopetition.com/petitions/salvem-o-museu-dos-coches/sign.html#se

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