sexta-feira, 2 de abril de 2010

Diálogos de Siracusa. 2º diálogo – Aristarco tinha razão, rodamos sobre nós próprios

















Nascer da lua sobre o mar de Siracusa                O mar de Siracusa com apanhadores de conquilhas




Diálogos de Siracusa
Tema e variações sobre ficções mais ou menos históricas
Os textos sob esta rubrica são uma adaptação anacrónica e discrónica de um papiro encontrado recentemente perto de Taormina, nas escavações de uma vila romana cuja presença insuspeita até agora se ocultava sob uma camada de 2 metros de terra, arrastada pelos ventos do Mediterraneo, e de cinzas de uma erupção do Etna, com lava a escorrer pelas ribeiras até ao mar, no século V DC, poucos anos depois de mais um maremoto em Olissipo, na Ibéria.
Os testes do carbono datam o papiro do século IV DC, parecendo ser uma cópia de cópias sucessivas de um texto escrito em Siracusa, pouco tempo depois da tomada da cidade pelos soldados do general romano Marcelo.
Tema:
O soldado de Marcelo e Arquimedes: cada um com a sua linguagem; duas linguagens incompatíveis, porque reproduzem mundos diferentes, e porque o soldado e Arquimedes nunca existiram.
Existiram sim as suas sombras, como explicou Pitágoras, e foram as suas sombras que vimos refletidas sobre o fundo da caverna em que vivemos.
E, pior ainda do que pensou Pitágoras, nem as sombras que vemos existem. O que existe é uma sucessão de preenchimentos de vazios que o nosso cérebro executa, decidindo, arbitrariamente, que movimentos as sombras fazem entre os breves instantes em que se insinuam mais próximas da realidade, e enganando-nos com o resultado do seu trabalho.
2º diálogo – Aristarco tinha razão, rodamos sobre nós próprios

Publius Coletius desceu a colina vindo do templo onde a vestal que sacrificava à deusa Íris lhe tinha concedido aqueles momentos de que ele tanto gostava, quando o sol nascia. Era muito cedo e ele gostava depois de se atardar na praia a contemplar o sol ainda baixo. Caio Indivisio regressava da pesca, aproveitando a calma noturna dos ventos, que de dia descem da montanha com violencia.
Caio Indivisio – Amicus Publius, visto deste lado, ao sol da manhã, o teu rosto está cheio de felicidade
Publius Coletius – Sim, é a vestal que me deixa assim. Como sabes, é a religião que dá força à humanidade.
Caio Indivisio – Tens consciência de que corres alguns riscos com essas conversas com a vestal? Se deitas abaixo os seus muros de proteção?
Publius Coletius – Mas eu gosto de conversar com ela. E nunca faremos nada que os deuses não tenham já feito.
Caio Indivisio – Está bem, está bem. Ajuda-me a levar o peixe para casa. Enquanto caminhamos conversamos.
Publius Coletius – Vamos então. Verifico que tens com que alimentar os teus escravos por uma semana.
Caio Indivisio – É necessário. A força da nossa economia assenta nos escravos. Bom, nos escravos e nos soldados que nos garantem a conquista das terras do trigo para o pão. Temos de repor a força de trabalho dos escravos depois de a esgotarem com o esforço físico
Publius Coletius – E de pagar aos soldados. Que também nos garantem a posse das terras das minas de metal para as nossas armas.
Melhor seria que seguíssemos os conselhos de Arquimedes e de Heron de Alexandria e aproveitássemos a força do vapor  (  http://pt.wikipedia.org/wiki/Eol%C3%ADpila  ).
Caio Indivisio – Como assim?
Publius Coletius – Por exemplo, o parafuso de Arquimedes
Caio Indivisio – Ora, bastam dois escravos e ele puxa a água que for necessária para a irrigação à altura suficiente
Publius Coletius – Pois, mas uma panela de Heron faria o mesmo com um pouco de lenha. E mais, esse parafuso, se aplicado a uma trirreme como se fosse o seu esporão, ou à popa, dispensaria os escravos remadores.
Caio Indivisio – À mesma tens de ter escravos para apanhar e acender a lenha.
Publius Coletius – Se te desse ouvidos nunca John Fitch e Robert Fulton, discípulos dos discípulos dos discípulos de Arquimeses, teriam posto a funcionar as suas trirremes sem remadores e com parafusos (hélices), do outro lado das colunas de Hércules e da Atlântida.
Caio Indivisio - Chegamos sempre ao mesmo tema de discussão. Queres fazer andar a história mais depressa. Queres repartir os benefícios do trabalho que pertence aos patrícios por todos. Eu quero respeitar as tradições dos deuses e dos antepassados. Quero dar aos patrícios a justa paga dos sestércios que investiram.
Publius Coletius – Recorda-te que é isso mesmo que eu quero, mostrar bem que a mesma realidade tem muitas e variadas faces, e que dois homens não conseguem pensar da mesma forma sobre uma realidade. Tomei o exemplo de Arquimedes e do soldado de Marcelo para mostrar que cada um fala a sua linguagem e assim não é possível entendermo-nos. Aliás a essência da realidade é a confusão, ninguém pode dizer que isto é assim, ou isto está aqui agora, ou o que é que é isto.
Caio Indivisio – Tal como diz o princípio da incerteza de Heisenberg.
Publius Coletius –Exatamente, se acreditamos na discronia, que aquilo que pensamos que resolve todos os problemas do mundo, mas de que daí a 5 átimos já não nos lembramos de nada, que é o pensamento do sol e de Zeus, que é a dispersão do que se reflete dos átomos de luz nos acontecimentos de hoje ou do futuro, e que podemos sempre tentar reconstituir.
Caio Indivisio – Estás um pouco hermético
Publius Coletius – Sim, mas também pode ser simples: era Aristarco que tinha razão. Rodamos sobre nós próprios e rodamos também em torno do Sol. Não há nada no mundo de fixo, nem de bem definido, nem de claro… Foi preciso esperar por Copérnico para convencer a opinião da plebe e dos patrícios.
Caio Indivisio – Lá está, os precetores dos filhos dos patrícios mudam o mundo.
Publius Coletius – Não deixes de estudar Aristarco. Olha, antes de Copérnico, já Hipatia de Alexandria lhe tinha dado razão. E já que estamos em discronia, não percas o filme Ágora, com a Rachel Weisz. Para além de explicar a visão de Aristarco, também explica como foi possível à sociedade religiosa dos nazarenos tomar o poder em Alexandria, o bispo Cirilo por um lado a manipular o nosso prefeito, e os monges guerreiros pelo outro a impor a força à plebe. Devia ter sido premiado, o filme.
Caio Indivisio – Estamos a chegar .
De facto, os dois já estavam junto do peristrilo da entrada monumental da vila de Caio Indivisio, dono de uma centúria de escravos e vários meios de produção, desde terras de vinha e olival a barcos de pesca e oficinas de ferraria e carpintaria. Um exemplo de sucesso fulgurante das ideias da economia liberal na colónia de Siracusa. Estava agora a montar uma hospedaria junto do templo de Taormina, para acolher os peregrinos e diversificar os seus empreeendimentos. Patrício de nascimento, isento do serviço militar devido aos contratos de fornecimento de alimentos para a tropa, beneficiário das influências dos seus pares patrícios.
Que contraste com o também patrício Publius Coletius, humilde funcionário da Ágora de Siracusa, herdeiro de algum património da família, aliás não rentável, ou não rendível, como dizem alguns gramáticos, e que vive exclusivamente do seu vencimento, sem querer ganhar dinheiro com o que poderiam ser as suas lições e as suas recomendações aos patrícios e seus filhos.
Caio Indivisio – E se ficasses para almoçar?
Publius Coletius – Amicus Caio, primeiro não avisaste a tua patrícia Porcia Ercília de que terias um convidado. E depois, embora os funcionários públicos de Siracusa tenham fama de preferirem as delícias do sol ao trabalho, a verdade é que me espera trabalho na Ágora, que é para onde vou agora, com alguma mágoa minha porque preferiria continuar a conversa.
Caio Indivisio - Toma então este saco de conquilhas que um escravo apanhou enquanto eu estava no mar. Frita-as em óleo de oliva com rodelas de tribola.
Publius Coletius – Assim seja, amicus mei. Que os deuses continuem contigo.

Sem comentários:

Enviar um comentário