terça-feira, 6 de julho de 2010

A última reunião

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A ampliação da gare do Oriente far-se-á numa faixa adjacente do lado Poente (para a esquerda, na foto da esquerda, para a direita, na foto da direita), com 3 novas vias e dois cais, para a alta velocidade








A reunião de hoje, terceiro dia do calor de Julho, da comissão de normalização de que ainda faço parte, é no Entroncamento, na EMEF.
É uma sensação engraçada, estar a poucos dias da reforma, pegar no computador portátil e partir para uma reunião, com ar de executivo atarefado, com o ar concentrado de quem se detem nos pormenores de uma decisão complexa.
Como já disse, sou ferroviário e por isso deixo o carro no parque de estacionamento da gare do Oriente.
Está cheio, o parque.
Não sou só eu que apanho o comboio aqui.
De manhã mais cedo, muitos destes automóveis deixaram aqui os seus condutores para a viagem ao Porto.
Pobres dos adeptos dos raciocínios primários, que acham dispensável o investimento no TGV para o Porto.
Digo pobres porque não é bonito ficarmo-nos pelo primarismo do raciocínio.
Devemos passar ao secundário.
E o raciocínio secundário diz que a linha do norte está saturada.
Sigo no comboio das 11:39 e vai quase cheio.

Antes, tenho tempo para ler o jornal e tomar o pequeno almoço na gare do Oriente.
Está muito calor e o calor provoca em mim o efeito que provoca nos africanos e nos brasileiros, o que é natural porque o código genético é o mesmo.
Os mecanismos de inibição atenuam-se com o calor e dou por mim a meter conversa com o vizinho da mesa da esplanada e com a rapariga que traz o seu pequeno almoço na bandeja e procura lugar.
Os mecanismos de predação e, consequentemente, os de alerta contra predadores, estarão também atenuados, e não parece haver reservas nas conversas inocentes, nem mal em espreitar as toiletes descuidadas das raparigas, de saias curtas e chinelos de praia, nem elas se sentirão constrangidas por serem observadas.

Mas não havia só raparigas bonitas.
Ao fundo da esplanada, um sem abrigo sentado na cadeira, todo dobrado sobre si próprio, com um copo de cerveja meio vazio na mesa.
A mulher, pobremente vestida, com um lenço à volta da testa, expressando-se em voz guinchada, tenta e consegue convencê-lo a levantar-se.
Reúnem as suas coisas, um carrinho e embrulhos, e dirigem-se para o seu trabalho de recolha de papeis.
Ao lado, quatro arrumadores jogam às cartas.
Estão no intervalo do seu trabalho, arrumados que estão os funcionários do complexo do Parque das Nações.
É a economia paralela a funcionar, com o desprezo que pessoalmente considero escandaloso das instituições regulares pelos artigos da declaração universal dos direitos humanos que falam do direito ao emprego e do direito à segurança social.
Os nossos decisores desprezam estas pessoas, pronto.

Preferem as obras de fachada, como esta infeliz ideia de ampliar a gare do Oriente por ajuste direto ao projetista, autor da gare tão exposta à intempérie. Para albergar a estação central de alta velocidade de Lisboa, que infelizmente não vai ficar na posição mais central no vale de Chelas. A confusão que se vai estabelecer aqui nesta gare do Oriente, durante as obras, com o pó a sujar as toiletes das senhoras e das raparigas que por aqui passam tão elegantes.

Enfim, mais uma reunião, talvez a última, desta comissão de normalização, em que participei.

PS - Durante a reunião debatemos a problemática do TGV em Portugal. Alguns de nós chamaram a atenção para que o principal problema do TGV em Portugal será o da manutenção de via. Porque terá de ser rigorosa e cara para garantir a segurança em alta velocidade.
Curiosamente, depois da reunião, tive uma pequena demonstração sobre o conceito de manutenção de via. Enquanto aguardava o alfa pendular, na estação do Entroncamento, os funcionários da estação informaram que o tráfego estava demorado porque em Vale de Figueira todos os comboios circulavam em via unica. Vale de Figueira é a poucos quilómetros ao norte de Santarem. Com o calor, um dos carris dilatou para além do tolerável e provocou um garrote (um bico). Consequencia: atrasos nos regionais, nos intercidades, nos pendulares, em ambos os sentidos, até no Sud-Expresso. Deveria ter chegado ao Oriente às 20:30, cheguei às 22:30. Coisas que acontecem quando uma infra-estrutura serve para todos os modos e que não interessa muito a quem decide as coisas sem estar dentro dos problemas reais. E se chegámos às 22:30 foi porque o nosso colega maquinista exagerou um pouco entre Azambuja e Vila Franca; viémos a 220 km/h quando a via não estava em estado para isso; a carruagem tremia por tudo que era sítio.
Não vou discutir a teoria dos aparelhos de dilatação nem os métodos de fixação de via e das travessas. Mas vou:
1 - recordar a afirmação de um antigo trabalhador de via na linha do Tua, no filme Pare, escute e olhe: "antigamente, no meu tempo, eramos 24 a tratar da via; agora não chegavam a meia dúzia..." (muitas vezes os gestores não tiveram conhecimento direto dos problemas reais da manutenção; por isso devem ser prevenidos contra os riscos de acreditarem na diminuição cega dos quadros de pessoal e na ilusão do "outsourcing" resolver todas as situações; embora eu não esteja seguro de ser ouvido)
2 - juntar duas fotografias que tirei à via na estação do Entroncamento. Por lá passam os alfa pendular (a velocidade reduzida, é certo, e com impecável acompanhamento do pessoal da estação para evitar atropelamentos, uma vez que não há passagens aéreas nem subterrâneas!). As travessas afundam no balastro descompactado à passagem dos bogies e podem ver como a madeira está rachada. Na outra fotografia pode também ver-se a deformação dos carris à aproximação da estação
  



Como referido na reunião, manter a via férrea custa muito dinheiro. Como aliás, qualquer infra-estrutura de transporte, como foi agora divulgado com as contas das estradas de Portugal. Isto é, não venham fazer como de costume, querer resolver o problema dos transportes com auto-estradas.




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