domingo, 16 de janeiro de 2011

Terreiro do Paço, 9 de Junho de 2000

O texto seguinte necessita de um esclarecimento.
Não se trata de uma folha de memórias da minha vida profissional.
É uma ficção construída a partir de alguns factos verídicos, que todavia não aconteceram da forma descrita (a descrição rigorosa dos acontecimentos obrigaria a uma pesquisa rigorosa que eu não fiz e tornaria interminável a escrita de um livro de outras memórias), e de outros factos puramente imaginários.
Os nomes das personagens e das empresas são inventados, assim como as ações, quando verídicas,  das personagens ou das empresas, podem não corresponder à personagem ou à empresa que no texto as executou.
Trata-se de uma técnica de escrita de ficção muito utilizada em  temática de sociedades religiosas, esotéricas, maçónicas ou mafiosas, com estritos fins de entretenimento.
É pois aplicável a todo o texto a velha expressão: “toda e qualquer semelhança com a realidade é pura coincidência”






Terreiro do Paço, 9 de Junho de 2000


Quando o solstício de Verão do ano 2000 se aproximava, decorriam ainda negociações com o fornecedor do sistema de controle automático da marcha dos comboios na linha da Exposição Universal de 1998.
O sistema permitia a condução automática dos comboios, embora não dispensasse a presença do maquinista para vigilância e autorização de partida em cada estação.
Tinha sido uma opção, considerando as tecnologias disponíveis na altura, adjudicada ao mesmo fabricante francês que equipava o TGV.
Foi um prazer apreciar o rigor com que foram executados todo o software, toda a documentação, todos os ensaios de segurança de circulação.
Porém, a compressão dos preços necessária para ganhar concursos públicos e as consequentes simplificações no equipamento a instalar na via geraram algumas inconformidades com o caderno de encargos que levaram a discussões prolongadas.
Por outro lado, o pouco tempo disponível após a conclusão da construção do túnel para a instalação da via férrea e dos sistemas complementares de energia, telecomunicações e sinalização ferroviária (no princípio de Dezembro de 1997 ainda a tuneladora não tinha chegado à estação do Oriente), impediu a realização dos ensaios do sistema automático antes da inauguração da linha, em Abril de 1998, um  mês antes da abertura da exposição.
Tão zangado fiquei com a tuneladora por não me ter deixado acabar o trabalho a tempo que propus aos colegas da especialidade que alugassem um batelão e a fossem depositar na fossa de Sesimbra, que é a zona mais profunda do nosso mar costeiro.
E julgo que com razão, porque a metade da linha, da Alameda até à estação da Belavista, construida pelos métodos tradicionais, ficou concluída muito antes.
Além disso, para atenuar os atrasos da construção, a tuneladora chegou a fazer 25 metros num dia (a média normal é de 12 metros), o que é um feito histórico.
A tuneladora é um comboio que, à frente, tem um disco com fresadoras que vai furando, enquanto atrás uma série de macacos radiais vai armando as aduelas pré-fabricadas, ligadas entre si por pernos curvos, sete por secção, ao longo do seu perímetro, ficando assim o túnel pronto, e uma série de macacos longitudinais vai empurrando o comboio, apoiando-se nas aduelas montadas.
É impressionante pela facilidade aparente.
Porém, como tantas vezes sucede, o sucesso é vizinho do insucesso, e com a precipitação, a tuneladora desviou-se para o exterior da  curva antes da estação terminal do Oriente, obrigando a um aturado trabalho de re-projeto do traçado das vias, que não ficaram assim paralelas às paredes (hasteais) do túnel.
Mas não me deram ouvidos e aquela túneladora ainda furou o túnel desde a Ameixoeira até quase ao Campo Grande, e 8 anos depois, desde a Alameda até S.Sebastião, mas neste caso já com o veio um bocadinho empenado e com os macacos de avanço pouco precisos e pouco simpáticos para as aduelas em que se apoiavam.

Foi assim, voltando ao solstício de verão do ano 2000, que numa manhã de Junho discutíamos com a administração as nossas razões e as razões do fabricante do sistema automático.
Nós queríamos que o sistema permitisse uma circulação mais rápida e intensa dos comboios e com menos perturbação, apesar de um sistema automático de segurança ferroviária à mínima dúvida, estar obrigado a interromper a circulação.
E o fabricante queria que nós déssemos o fornecimento por concluído.
O assunto chegou  a ameaçar tornar-se um incidente diplomático.
Eu contei aos enviados do fabricante a história da barca Charles e George, que eles não conheciam, dizendo-lhes que eles podiam repetir a história, mas que nós éramos como o alferes português (a barca Charles e George, de um armador francês,  foi apresada por um alferes português em 1857 ao largo de Lourenço Marques com um carregamento de escravos para a ilha da Reunião, já depois da abolição do comércio de escravos; o alferes instruiu o processo para o tribunal de Lisboa; o tribunal inglês sentiu-se menos considerado e deixou cair o caso; os advogados do armador francês conseguiram provar no tribunal que os cidadãos acorrentados no convés da barca o estavam de livre vontade, à espera de serem transportados para uma vida melhor de trabalho mais bem pago).
Até chegou a colocar-se a hipótese de ele ter sido resolvido por via diplomática, por uma invisível transferência, no sentido internacional e economista do termo, para a campanha eleitoral de um partido político e com um meritório empenho dos técnicos franceses residentes na resolução das inconformidades. Que foram declaradas ultrapassadas em Novembro desse ano, entrando o sistema ao serviço.

Ao fim da manhã a reunião foi interrompida por um telefonema. Alguém da frente de trabalho do túnel do Terreiro do Paço informava que o túnel tinha abatido.
Os administradores dos pelouros das obras e das áreas técnicas saem rapidamente, deixando-nos, aos técnicos do sistema automático dos comboios, com o administrador financeiro.
Desconsolado, perguntava-nos : “e agora? Que vamos fazer? Quanto vai custar isto?”~
Pego numa folha de papel e na esferográfica e desenho o esquema do túnel, a curva aberta desde o pátio do arsenal da Marinha, à frente do cais das colunas e ao encontro com o terraço fronteiro ao torreão nascente, o do ministério das Finanças.
-“Está a ver doutor? O túnel foi abaixo aqui; agora há que fazer uma paliçada de estacas entre o túnel e o rio, está a ver estes pontos negros? São as estacas; com a paliçada forma-se a  ensecadeira; depois é esgotar a água e escavar os aluviões e consertar o túnel, por fora. Felizmente há em Portugal muita experiencia de trabalho com ensecadeiras; é assim que se fazem barragens”.
- “Mas você não é eletrotécnico?”
-“Sou, sou, mas já discutimos isto com os colegas da especialidade. Isto, quer dizer, o método de construção da estação. Não fui só eu, ignorante de engenharia civil, a discordar da utilização da tuneladora por baixo do rio. Os nossos colegas do metro de Londres tiveram imensas dificuldades para atravessar o Tamisa com a tuneladora e para construir a estação de Westminster, apesar de Isambard Brunnel ter iniciado a técnica das máquinas perfuradoras.
Só há muito pouco tempo os holandeses dominaram a técnica em Roterdão. Por isso muitos de nós advogámos desde o princípio a utilização do método da ensecadeira, com a construção do túnel do metropolitano a céu aberto e, em simultâneo, a construção do troço de túnel rodoviário, que por o projeto inicial prever a ligação rodoviária em túnel, do Terreiro do Paço para o Cais do Sodré, é que o nosso túnel e a estação de Terreiro do Paço são tão profundos. Mas não é o que o empreiteiro quer fazer, dava-lhe mais jeito utilizar a tuneladora.
Mesmo em terrenos favoráveis, a tuneladora faz o túnel, mas nas estações a construção é independente e a tuneladora é arrastada pelos macacos durante um mês. Aqui o empreiteiro deu-lhe para fazer o túnel primeiro e, depois partir o túnel para construir a estação do Terreiro do Paço à volta. E deu nisto. Era um risco e não é uma surpresa. Vamos ver agora qual será a extensão dos estragos e voltar à ideia da ensecadeira. ”
O doutor pareceu mais animado com a solução, e como nada podíamos resolver, fomos prosaicamente almoçar.

Poucos dias antes, o conselho de administração tinha assinado com a prestigiada firma de construção civil Meira e Zuzarte o contrato para a construção dos toscos da estação Terreiro do Paço.
Fora um processo de contratação tormentoso. O construtor do túnel, com a tuneladora, uma destacada firma brasileira, não tinha contratado a construção das duas estações, Terreiro do Paço e Santa Apolónia, mas apenas o túnel. E quando apresentou o orçamento para fazer a estação, o presidente da gerência afirmou para quem o queria ouvir que, a ele, ninguém lhe fazia o ninho atrás da orelha, que o preço pedido era exagerado e que iria fazer um concurso público.
Na realidade, os contactos do Tribunal de Contas já tinham feito constar que o contrato para a construção das linhas da baixa, do Rossio ao Cais do Sodré, e dos Restauradores até Santa Apolónia, era tão vago e as soluções que as dificuldades técnicas encontradas tinham encarecido tanto o empreendimento, que o melhor seria fechar o contrato. Já se suspeitava que, de Bruxelas, poderiam reclamar os fundos entregues ao Metropolitano, por favorecimento da construtora brasileira, a acrescentar novos trabalhos à medida que surgiam as dificuldades esperadas no geral, mas sempre imprevistas em particular.
Digamos que o trabalho da construtora foi cerca de 3 vezes o valor contratual.
Mas vale dizer que cada solução encontrada estava à altura de uma tese. Por exemplo, o tratamento dado às fundações do Hotel Avenida Palace e, especialmente, ao reforço das fundações da estação do Rossio da CP, em que cada pilar teve direito a uma nova fundação, em tamborete, com a estação escorada.
E depois, a caminho da nova estação de Baixa-Chiado, e na construção das duas enormes naves de catedrais subterrâneas, e à passagem sob as fundações do convento do Carmo, de que Nuno Álvares Pereira tinha dito que, se não aguentassem, que as fizessem de bronze, toda a colina entrou em instabilidade e os edifícios abriram fissuras. Durante um mês manteve-se a instabilidade, enquanto no terreno se injetava calda de cimento sob pressão.
Veio de Londres uma especialista de geotecnia envolvida nas tormentas da construção da linha do Jubileu.
Perante os indicadores e as medições dos assentamentos disse amavelmente que não podia demorar-se, mas que a chamassem quando se desse a derrocada.
Não deu.
A ideia que os técnicos do norte têm de que os técnicos do sul deixam cair tudo…
A construtora brasileira susteve os assentamentos e, concluídos os túneis de acesso à estação e betonadas as suas abóbadas, toda a colina serenou. Não sem que o metropolitano tivesse pago indemnizações desde a pastelaria Suíça e o café Nicola no Rossio, e o Hotel Avenida Palace nos Restauradores, até à igreja do Sacramento, que aproveitou para restaurar os seus frescos do século XVIII.
 Infelizmente, os inspetores do tribunal de contas, zelosos defensores da justeza de aplicação dos dinheiros públicos, e o senhor presidente da administração, não terão medido bem a dimensão da complexidade técnica de toda a obra, e que não era possível prever todas as dificuldades no contrato inicial, pese embora, como se sabe, as estimativas de custos serem sempre menorizadas para facilitar a aprovação das verbas para os investimentos.
E neste caso, as estimativas eram otimistas.

Qualquer cidadão sabe que a garantia de um bem se perde quando um terceiro intervem. Parecia simples de explicar isto. A própria construtora brasileira, quando saiu da obra, apressou-se a enviar uma carta ao metropolitano, pedindo encarecidamente que providenciasse o enchimento do fundo do túnel com uma camada de betão poroso para dar peso e rigidez ao túnel.
Foram aproveitados uns entulhos de obra e uns materiais que davam altura para a circulação de vagonetas. Foi tudo alisado com uma camada de betão leve. Não foi betonada a camada de betão poroso rigidamente encostado às aduelas. Com isso se poupou algum dinheiro em betão.
A partir daí, toda a responsabilidade da construtora pelo que construira cessava, porque a solução técnica que pretendia executar se tornou impossível por decisão administrativa.
O presidente pediu urgência à Meira e Zuzarte, pois que tinha ganho o concurso por ter apresentado um preço baixo e um prazo curto, embora estes dois fatores sejam as mais das vezes uma forma de amarrar os dinheiros públicos a gastos adicionais mais tarde, coisa difícil de compreender pelos zelosos.
E a Meira e Zuzarte, diligentemente, já tinha aproveitado os dias de elaboração do contrato para mobilizar os seus carotadores para entrarem em obra assim que o contrato estivesse assinado.
Tinha sido esse o método escolhido para partir o túnel e construir a estação

Todas estas combinações se resolviam em círculos fechados. Os técnicos que analisavam as questões com os empreiteiros, muito provincianamente, viviam embevecidos com o nível elevado das verbas envolvidas. Quando alguma coisa transpirava, qualquer objeção que puséssemos era imediatamente contestada com o argumento da complexidade técnica para a qual não estávamos habilitados a discutir o que quer que fosse.
Na realidade eu não estava nada habilitado, e terminava sempre a conversa com os colegas com esta frase: “Por mim, fazia a obra com ensecadeira, como nas barragens; eu espero que saibam o que estão a fazer, porque eu, na verdade, não sei o que vocês estão a fazer”.
Os carotadores eram necessários para furar o túnel, com furos da ordem de 20 cm, através dos quais se enfiariam mangas de polietileno e varões de aço, seguindo-se a injeção de betão em calda, sob pressão, formando estacas que ancorariam o túnel aos terrenos de aluvião existentes.
Depois de ancorado o túnel, com múltiplas estacas, construir-se-iam os tímpanos (paredes das extremidades) da nova estação e armar-se-iam as estacas que constituiriam a paliçada das paredes da estação.
Depois disso se partiria o túnel compreendido na estação.
Na verdade, esta era uma solução razoável.
Mas não era, na sua execução de pormenor, a do construtor do túnel.
Ia-se mexer no túnel, furá-lo, sem que o construtor fosse responsável por isso.
Ia-se perder a garantia.

Na manhã em que discutíamos o sistema de controle automático dos comboios, a firma sub-empreiteira de carotadores desceu bem cedo ao túnel a instalar as suas máquinas perfuradoras.
Eram gente experiente e por isso não perderam tempo.
A pequena máquina com lagartas de tratorzinho e o seu veio de inclinação variável para perfuração iniciou rapidamente o primeiro furo, sem esperar pelos colegas da fiscalização do metropolitano, nem pelo técnico da Meira e Zuzarte.
Os carotadores, como eram gente com experiencia, estavam habituados a não fazer esperar, e tinham já outras obras à espera, que o trabalho deles é especializado e muito requerido para obras de escavação e de contenção dos terrenos e dos edifícios adjacentes à escavação, ou em obras de contenção de muros à beira de auto-estradas.
O primeiro carote saltou depressa no piso irregular do enchimento do túnel. Um cilindro de 20 cm de diâmetro e 50 cm de altura, que é a espessura das aduelas.
Não tardou que o segundo carote lhe fizesse companhia.
E o terceiro, e o quarto.
Ao fundo de cada orifício via-se o lodo, ou aluvião do terreno envolvente do túnel, a humidade refletindo o brilho dos projetores de iluminação da obra.

O dia cá fora estava bonito. A superfície do rio brilhava ao sol ali tão perto das obras no túnel.
No estaleiro fronteiro ao sítio do paço da ribeira, mesmo ao lado do rio à sombra de árvores frondosas, encontraram-se os três técnicos da inspeção e fiscalização do metropolitano: Raul Pinheiro, o diretor geral da obra,  ainda jovem,  sem experiência de construção antes de ter entrado recem-formado na empresa, mas vividos já os percalços da obra do viaduto do Campo Grande e da furação dos túneis dos Restauradores e do Rossio para o Cais do Sodré e para Santa Apolónia;  Matos Conde, um engenheiro sénior com vasta experiencia de construção civil, diretor da fiscalização; e Jaime Guiante, chefe de obra da estação do Terreiro do Paço.
Tinham combinado encontrar-se ao fim da manhã para uma visita ao local da obra com os técnicos do empreiteiro Meira e Zuzarte para acertar os pormenores do início da obra. Depois ainda poderiam aproveitar o bom tempo para almoçar na esplanada do Guarda-rio, ali à beira do cais do gás.
O contrato tinha sido assinado havia poucos dias, o estaleiro do empreiteiro ainda não
estava montado, os três estavam confiados. Ignoravam as palavras do administrador principal da Meira e Zuzarte na assinatura do contrato, dignas, pela premonição, de uma tragédia grega – “vamos fazer tudo para que esta obra fique na história da engenharia portuguesa, e vamos fazê-lo depressa”.
Tinha sido o administrador principal do metropolitano a pedir pressa na execução da obra. Sabe-se como os administradores do metropolitano são sensíveis à rapidez de execução, porque isso lhes dava prestígio junto dos ministérios e garantias de futuro em próximas colocações em empresas públicas, desejavelmente em empresas cada vez mais importantes.
Os três desceram pelo poço da Marinha, assim chamado por estar no pátio do arsenal do Alfeite, por onde tinham sido introduzidos os componentes da tuneladora, Jaime Guiante à frente por ser, diga-se assim, o dono da casa.
O poço desembocava diretamente no túnel. Do lado da estação Baixa-Chiado, uma comporta fixa de betão fortemente armado isolava o túnel em exploração, com os comboios da linha para o Colégio Militar a inverter o seu sentido de marcha na estação, e os comboios da linha do Cais do Sodré para o Campo Grande a servirem o outro cais da estação.
A comporta armada tinha sido exigida pela companhia seguradora e distava cerca de 300 metros, em rampa suave até à estação em serviço. Para o outro lado, o túnel até Santa Apolónia, com pouco mais de um quilómetro, estava protegido da zona da obra de carotagem por um emboque de betão simples, no limite do sítio da estação Terreiro do Paço.
Entre o poço da Marinha e o sítio da estação Terreiro do Paço o túnel prolongava-se em declive e em curva para a esquerda, cerca de 500 metros até ao troço plano onde estava prevista a construção da estação do Terreiro do Paço e onde os carotadores estavam a trabalhar.
Os três descem ainda calmos o declive. Não vêem os carotadores por causa da curva. Já estão 13 carotes executados. Os carotadores largam os seus equipamentos porque vão almoçar, e é então que chegam os três.
A surpresa é grande. Raul Pinheiro interpela o engenheiro da Meira e Zuzarte : - Pá, o que fizeste? Tapa já isso.
Raul Pinheiro tinha tido um episódio curioso durante a construção do túnel entre o sítio da estação Terreiro do Paço e Santa Apolónia. A tuneladora tinha já construído a curva do túnel desde o poço da Marinha até ai Jardim do Tabaco. A geotecnia do terreno deixara de ser de simples aluvião, sob o rio, e era agora mais argilosa. Havia que mudar as fresas do disco de escavação com 10 metros de diâmetro. Para isso a tuneladora dispõe de uma câmara de acesso às fresas. Quando se abriu a portinhola de acesso, água e lama começaram a escorrer para o interior da tuneladora. Foi necessário, para mudar as fresas, praticar um poço de acesso exterior ao disco. Assim se compreende a pergunta de Raul Pinheiro – Que fizeste?
O lodo saía já pelos primeiros carotes, ainda lentamente, mas mostrando já força. Montaram-se as cunhas do jogo de acessórios dos carotadores, semelhantes, em ponto grande, às cunhas usadas na marinharia para obturar os orifícios de travessia dos cascos. Trouxeram-se os sacos de areia que existem sempre nas obras junto de água.
Mas os buracos dos carotes já eram fontes que jorravam água e lodo. Não foi possível contê-los. O ruído que aquele fluido fazia aumentava de intensidade e de frequência e a água já subia no pavimento.
Os três fizeram como os comandantes dos navios. Foram os últimos a fugir para o poço da Marinha. Ouvem-se sons de ruptura, sente-se o pavimento a soltar-se das paredes das aduelas e a água cresce mais depressa, como onda espraiada na rampa.
Jaime Guiante, por ser corpulento e pesado, vai atrás dos outros dois. Estão quase a chegar ao poço da Marinha quando grita : “Estou a ter uma cãimbra”.
Matos Conde não consegue conter a frase: “Ficamos todos aqui”. Mas dão as mãos, ele e Raul Pinheiro, e içam Jaime Guiante para o primeiro patamar do poço da Marinha. Sobem a escada provisória e beijam o solo do pátio. Lá em baixo a água revolteia de encontro à comporta.
Providenciaram-se camiões betoneira para despejar betão pelo poço da Marinha para vedar o túnel acidentado e reforçar pelo interior do túnel o emboque do sítio da estação Terreiro do Paço, do lado de Santa Apolónia. Trazem-se também bombas transportáveis de grande capacidade de bombagem que conseguem fazer baixar o nível da água e facilitar o trabalho de vedação do túnel acidentado, tanto pelo lado do poço da Marinha como no emboque do lado de Santa Apolónia.
Já estão reunidas as direções técnicas do metropolitano e da Meira e Zuzarte com a administração do metropolitano, são chamados professores ilustres do Laboratório Nacional de Engenharia Civil.
Não estão presentes técnicos do empreiteiro construtor do túnel, nem tampouco alguns especialista de estruturas do  metropolitano que poderiam ajudar. Em Portugal prevalece a opinião que restringir o círculo de decisão melhora as decisões.
Talvez não fosse importante; os pormenores da construção do túnel eram dominados pelos técnicos do metropolitano. Mas a garantia do construtor desvanecera-se, com a agravante de existir no metropolitano aquela carta sua, depois de terminado o contrato, em que considerava essencial consolidar urgentemente com betão o fundo do túnel, em vez de tapar os detritos desagregados com uma betonilha ligeira.
Ninguém estranhou a ausência do empreiteiro do túnel.

Vedado o túnel, é decidido enchê-lo com água, para que a pressão interior do túnel compensasse a pressão exterior sobre ele (pressão de natureza hidro-estática, isto é, exercendo-se igualmente em todos os pontos e em todos os sentidos, dada a elevada percentagem de água nos terrenos envolventes) e assim o não destruisse, enquanto se projetava a obra de recuperação.

Discutiu-se durante os dias seguintes o projeto de recuperação.
Discutiu-se significa discutiu-se num círculo restrito.
Alguns dos melhores técnicos de estruturas e túneis do metropolitano não foram ouvidos. Uma das soluções propostas era o revestimento interior do túnel com chapas de aço soldadas umas às outras.
Por maioria de razão não foi seguida a minha sugestão do método da ensecadeira.
Mas o prestígio dos consultores tinha alguma correspondência com a realidade e como se irá ver a solução escolhida foi de bom nível.
Notar que nesta altura, com o túnel vedado e submerso, não era possível avaliar a extensão dos estragos, apesar do recurso a mergulhadores profissionais. Isso só foi possível um ano e meio depois, estabilizado o túnel, construídos os novos emboques de limitação da estação do Terreiro do Paço, dum lado e doutro, e esgotada a água de compensação.
Mas nestas coisas de engenharia, há sempre indícios que permitem construir hipóteses. E um dos indícios mais evidentes, logo a seguir ao desastre, foi o abatimento de algumas zonas do pavimento da praça do Terreiro do Paço, nomeadamente no sopé da estátua de D.José, a mais de 100 metros de distancia dos carotes, e o afundamento de mais uns milímetros do torreão Poente, já de si em processo antigo de assentamento nos lodos, com fratura de cornijas e lajes de varandas a meio das arcadas.
Pôs-se então a hipótese de que a pressão hidrostática tinha forçado a entrada no túnel, pelos orifícios dos carotes, de grandes quantidades de aluviões que, deslocando-se, foram criando espaço para o arrastamento das terras sob o pavimento do Terreiro do Paço. Ter-se-ão criado vários caminhos, de tipo arborescente, para tais arrastamentos de terras, aluviões e águas, enquanto a pressão do aterro à superfície do rio, que desde a passagem da tuneladora seguia a curva do túnel para compensar a força de impulsão do próprio túnel, conforme Arquimedes ensinava, conjugada com a pressão hidrostática, provocou uma deformação das aduelas na zona dos carotes com ovalização da secção do túnel em cerca de 10 cm, isto é, 1% do diâmetro da secção do túnel. Apesar de tudo, poucas aduelas se partiram, e nunca mais do que duas em cada secção.
Tudo isto se confirmou depois do esgotamento da água de compensação.

O assunto subiu à  Assembleia da Republica.
A pressão da opinião pública, ou de quem escreve por ela, era grande, para ajuizar como os dinheiros dos contribuintes eram malbaratados e para encontrar culpados.
Cada partido nomeou os seus representantes, todos com ar muito compenetrado e distantes das razões de causa e efeito do acidente.
Entretanto a ministra das obras públicas decidia ser ela a resolver o problema técnico.
A ministra Diana Pereira, engenheira civil, dedicara a maior parte da sua vida profissional ao ordenamento territorial, por esse país fora.
Era uma técnica apreciada, movendo-se corajosamente, ou não se chamasse Diana, num meio dominado por homens. Só praticara o projeto de estruturas nos primeiros tempos da profissão, passando de seguida à carreira de gestora. O sucesso do seu  gabinete de planeamento acabou por ditar a chamada ao governo pelo partido mais destacado na luta da iniciativa privada na tomada do espaço das externalidades até então tratadas pelo setor público.
Tinha-se especializado, recem-formada, na Holanda, em geotecnia e obras especiais.
Partilhara o quarto de estudante com uma delicada holandesa do norte, da Frísia.
Nunca mais a vira.
Apenas guardava dela a recordação dos longos passeios nos canais de Amsterdam, da ternura das noites aquecidas de inverno, das tardes de domingo com os Vermeer do Reijksmuseum, das flores e dos órgãos de vapor nas feiras de sexta feira, dos risos das duas em frente das montras das noites vermelhas da Paradise Straat, dos sniper trips dos Spoorweg (caminhos de ferro) de fim de semana ao Kroller Muller de Van Gogh e às ilhas da Frísia.
Por isso teve um choque quando os assessores lhe apresentaram, depois de pesquisa expedita, uma lista de possíveis consultores estrangeiros especialistas de geotecnia e túneis sub-aquáticos.
Lá estava o nome dela, à frente de um gabinete de engenharia com referências de sucesso nos trabalhos complexos dos túneis ferroviários em Rotterdam.
A engenheira Diana não hesitou, invocou a urgência e apontou: quero este gabinete.

O deputado do seu partido, sabendo-se  filmado pela televisão, levou para a reunião da comissão do Parlamento uma cunha e, seguro da sua qualidade de engenheiro, interrogou o administrador do metropolitano: Sabia que se houvesse um jogo completo destas cunhas ter-se-ia evitado o desastre?
Pobre deputado, depois do mal feito, por mais cunhas que ali estivessem, a pressão hidro-estática prevaleceria sempre. E não conseguiu perceber o vínculo entre a rejeição do empreiteiro construtor do túnel e as pressas do novo empreiteiro e descoordenação do trabalho dos carotadores.
Mas impunha-se-lhe fazer o jogo político contra a oposição, porque a administração do metropolitano tinha sido nomeada, em anterior legislatura, pelo partido que agora se encontrava na oposição.
Veio o truculento deputado do partido da oposição, também seguro do seu diploma de engenheiro, garantir que as linhas de água do vale de Lisboa, descendo no subsolo da Avenida da Liberdade e da Avenida Almirante Reis, pressionaram de tal maneira as paredes do túnel que tinham partido as aduelas, gerando-se um fenómeno de “chaminé de areias”.
Pobre deputado tão fantasista, que nem uma única vez falou em carotes.
As audições prolongaram-se por várias semanas.
Raul Pinheiro, Matos Conde e Jaime Guiante lá se foram justificando, recorrendo a termos técnicos sempre que possível, para acalmar a sede de culpados  dos autores dos interrogatórios.

E de repente, a Comissão deu por findos os seus trabalhos, concluindo um relatório que propunha o acionamento do seguro do empreiteiro e recomendando um acerto de contas entre o metropolitano e o empreiteiro para o prosseguimento do contrato de construção da estação Terreiro do Paço, justificando as multas pelo atraso da obra com a real complexidade técnica.
A obra da estação já ia adiantada, com o projeto original, do próprio metropolitano. O sítio da estação tinha-se deslocado no sentido do poço da Marinha, afastando-se de Santa Apolónia, para “abraçar” a zona acidentada. Tinha sido construída uma paliçada de estacas secantes que atingiam o fundo firme e formavam um prisma retangular ancorado nos emboques de betão dos topos da estação. Os lados mais compridos estavam travados por escoras metálicas que ficaram até à betonagem final da estação. Um projeto lindo.

A alta direção da Meira e Zuzarte, para não fazer mentirosos de quem assevera que o poder político é controlado pelo poder económico, que Fernão Lopes perdoe a paráfrase, tinha diligenciado com eficácia como mediador entre os dois partidos.
A mediação era indispensável porque o conflito tinha atingido níveis elevados. Às escondidas do público e dos órgãos de comunicação social, mas de forma psicologicamente violenta.
O partido da oposição ameaçava revelar os aspetos mais íntimos da relação da ministra com a diretora do gabinete holandês de engenharia se a investigação da comissão do Parlamento condenasse a administração do metropolitano, seus confessos comissários políticos. E isso, naquele tempo, seria muito mal recebido pela opinião pública.
O partido do governo não só ameaçava a administração do metro como o próprio governo anterior. Acusava de inquinação todo o processo de adjudicação ao empreiteiro da tuneladora, de afastamento dos valores contratuais e de incumprimento das normas de financiamento europeu na concessão de trabalhos a mais, incorrendo assim na suspeita de favorecimento ilícito do anterior empreiteiro.

A Meira e Zuzarte não estava interessada  em que se expusesse a sua incapacidade de controlar o sub-empreiteiro carotador, e conseguiu levar a sua mediação a bom termo.
O relatório da comissão foi rápida e pacificamente  aprovado.
A ministra veio a tomar posse duma cátedra de planeamento e ordenamento do território numa universidade do sul do país e não foi incomodada pela comunicação social.
A administração do metropolitano, no termo do seu mandato, foi substituída por uma mistura equilibrada de representantes dos dois partidos, para que não se dissesse que os gestores das empresas públicas eram os comissários políticos que se conhecem.
O gabinete da suave holandesa desenvolveu o seu projeto de recuperação do túnel, construindo outro por dentro do túnel pré-existente, em anéis de betão armado de 10m de comprimento cada um, embricados uns nos outros como os dos lavagantes. Também instalou a monitorização dos deslocamentos, cujas medições eram enviadas pela Internet para a sede na Holanda.
A consolidação dos terrenos-aluviões envolventes seria feita mais tarde segundo um projeto do Laboratório de Engenharia Civil, através de estacas semeadas à volta do túnel, o que estabilizou também o torreão Poente.

Quando me despedi do administrador financeiro que tão preocupado ficara com o acidente, já funcionava o sistema automático dos comboios da linha vermelha, do Oriente. As ordens de comando e de travagem eram fornecidas pelo sistema, que em qualquer momento processava as informações sobre o estado de ocupação da linha, sobre a posição das agulhas, sobre a localização do próprio comboio, e comparava a velocidade programada com a velocidade real, acelerando ou abrandando. O comboio conduzia-se a si próprio, com o maquinista apenas a vigiar e a dar ordem de partida nas estações.

A nova administração do metropolitano, nomeada após o episódio caricato da recusa por um engenheiro, de exposição mediática, do cargo de presidente da administração, por não ter aceite a indigitação pelo partido da oposição do administrador financeiro, recebeu do novo ministro a incumbência de acabar de resolver o problema do Terreiro do Paço.
A sua primeira decisão foi uma não decisão: comunicar oficialmente que já não se construiria o túnel rodoviário do Campo das Cebolas para o Cais do Sodré. Assim se confirmou o desperdício de se ter projetado a estação do Terreiro do Paço demasiadamente profunda, com o que isso custou a mais.

A nova administração visitou orgulhosamente a obra da estação do Terreiro do Paço.
Já tinha havido o perdão da comissão do Parlamento, mas ainda não se tinha chegado ao acerto de contas. Inclinando a cabeça para passar debaixo das escoras horizontais, o novo presidente disse que era preciso pôr mais recursos em obra porque havia prazos a cumprir. Ao que o administrador da Meira e Zuzarte respondeu, já do outro lado da escora, muito direito no seu casaco azul de botões prateados, que a sua empresa não era uma instituição de benificência  e por isso precisava de receber em adiantado para pagar aos fornecedores, sub-empreiteiros e empregados.
Poucos dias depois o acerto de contas contentava todos: a Meira e Zuzarte pagava uma multa de vários milhões de euros pelos prejuízos causados, mas o metropolitano pagava um prémio largamente compensador pelas soluções reativas ao acidente, pela complexidade técnica da construção, e pela rapidez de execução da estação, tudo validado por prestigiado gabinete jurídico muito solicitado pelas empresas públicas.

Sete anos e meio depois do acidente, demolimos a comporta de proteção no poço da Marinha, lançámos os carris e os sistemas de energia elétrica, de telecomunicações e de sinalização ferroviária e ensaiámos as circulações de comboios no túnel até Santa Apolónia.
Com um ou outro percalço nos sistemas complementares e algumas incompletudes, o coração encheu-se-nos de alegria ao ver a chegada dos comboios da Azambuja em Santa Apolónia e dos barcos do Barreiro no Terreiro do Paço despejar gente que apanhava os comboios do metro e ia trabalhar.
Estávamos quase no solstício de inverno de 2007.

Na cerimónia de inauguração, muito concorrida e participada ao mais alto nível pelo governo e câmara municipal, houve discursos com muito orgulho, mas não se falou nas questões técnicas da rede de transportes da área metropolitana de Lisboa, da insustentabilidade de a maior parte das deslocações ser feita em automóveis privados, consumindo combustíveis fósseis não renováveis.

E esse é que é o verdadeiro desastre dos túneis do metropolitano de Lisboa.

 

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