terça-feira, 1 de fevereiro de 2011

Deolinda - Que parva que eu sou

O concerto dos Deolinda foi um exito. A sua nova canção "Que parva que eu sou" começou logo a circular na Internet:



Sou da geração sem remuneração
e não me incomoda esta condição.
Que parva que eu sou!
Porque isto está mal e vai continuar,
já é uma sorte eu poder estagiar.
Que parva que eu sou!
E fico a pensar,
que mundo tão parvo
onde para ser escravo é preciso estudar.

Sou da geração ‘casinha dos pais’,
se já tenho tudo, pra quê querer mais?
Que parva que eu sou
Filhos, maridos, estou sempre a adiar
e ainda me falta o carro pagar
Que parva que eu sou!
E fico a pensar,
que mundo tão parvo
onde para ser escravo é preciso estudar.

Sou da geração ‘vou queixar-me pra quê?’
Há alguém bem pior do que eu na TV.
Que parva que eu sou!
Sou da geração ‘eu já não posso mais!’
que esta situação dura há tempo demais
E parva não sou!
E fico a pensar,
que mundo tão parvo
onde para ser escravo é preciso estudar.


É toda uma geração que se identifica com esta letra.
Já se proclama que é a nova canção de intervenção.
E quando os protestos começam nos jovens, o poder pode tremer.

Sabes, Deolinda, quase que me apetece concordar, que parva que és.
Mas como diria Inês Pedrosa ("Fazes-me falta"), serás antes uma garota zonza.
Demasiado ingénua para pensares, enquanto andaste a estudar, que o mundo talvez não fosse o que lias nos jornais (ou vias na televisão), o que te diziam os teus professores de gestão que os mercados têm de ser competitivos e livres, que as maravilhas da Internet e das novas tecnologias tudo resolviam por si.
Garota zonza, que deste prioridade às noites da 24 de Julho ou da Ribeira.
Que te orgulhaste de, repentinamente, o teu país começar a ter a juventude nas universidades; já não havia aquela separação antipática dos filhos família que podiam tirar os cursos superiores enquanto os teus pais e os pais dos teus vizinhos tinham de procurar cedo trabalho nas lojas, nas oficinas, a aprenderem na universidade da vida em lugar de aprenderem nas escolas indutriais ou comerciais ou nos liceus, como se dizia antigamente das escolas secundárias.
Não reparaste, ocupada como estavas com os teus testes de gestão e com os programas de socialização e normalização que tinhas de preparar para as noites de fim de semana (porque senão não te integravas entre os teu pares e isso seria uma rejeição insuportável), que no teu país se estava a criar uma separação escandalosa entre os cada vez menos que têm a cada vez maior fatia do rendimento e os cada vez mais que têm a cada vez mais pequena fatia do rendimento.
Mas foste sempre acreditando que a culpa era dos malcheirosos que não queriam trabalhar nas fábricas, ou nos transportes públicos, ou então que a culpa era dos professores que ganhavam mais do que os colegas finlandeses.
E para ti nunca houve sindicatos, essa coisa do passado, já ultrapassada.
Nunca achaste importante ir votar.
Aliás, ainda nas últimas eleições, garota zonza, deixaste a abstenção ganhar a votação.
Tiveste coisas mais importantes para fazer, um filme em DVD, ou jogos na Wi.
Ou não tinhas confiança nos politicos.
Eu acho que não podes meter todos os politicos no mesmo saco, mas eu pertenço a uma geração já muito antiga, ultrapassada, jurássica como gostas de dizer, do tempo em que havia 30.000 homens e 15.000 mulheres com um curso superior (não era bom, evidentemente).
Não tenho os números de agora, mas quando acabaste o teu curso superior os numeros eram 260.000 homens e 370.000 mulheres. Essa foi uma vitória do teu país, juntamente com a diminuição espetacular da mortalidade infantil.
Coisas do estado social, ou providencia, como te habituaste, acrítica, a ouvir classificar, sempre para valorizar a iniciativa privada, o mercado desregulado.
Nunca pensaste que era isso, o acriticismo permissivo da desregulação, que os grandes grupos económicos estavam interessados em que tu e a tua geração pensasse, para poderem fazer as suas especulações mais descansados, os seus negócios com as "off-shores", os seus negócios entre amigos.
Achavas bem ires aos grandes centros comerciais e comprar fruta barata, embora ela viesse de países em que os apanhadores de fruta são explorados como se fossem escravos (estes sim,como se fossem escravos: só são aceites como apanhadoras de morangos na Andaluzia marroquinas com filhos, para haver a garantia de que regressam a Marrocos), ou comprares uns sapatos de marca italiana de tiras prateadas feitos na India por um miúdo cheio de fome.
Nunca quiseste saber desses pormenores desagradáveis.
Interessavam-te os melhores preços, mesmo que as empresas de cá fechassem.
Enquanto os teus amigos iam acabando os seus cursos, iam ganhando os seus recibos verdes, iam, como tu dizes,tendo a sorte de poder estagiar, ou, tendo ainda mais sorte, iam arranjando um emprego numa empresa pública, com garantia de trabalho remunerado, com um recibo suficientemente credivel junto dos bancos para viabilizar o empréstimo para a compra do andar nos suburbios de Lisboa ou para a compra da carrinha de prestígio para impressionar os vizinhos. 
Isso não tem mal, tirando talvez essa ideia de querer impressionar a vizinhança com o carro potente, mas a cidade deixou de ser uma cidade para jovens. 
Mas mesmo assim não te importaste muito.
Tu e os teus amigos têm o Facebook para trocar as mensagens de socialização e de normalização em torno da vitimização de quem é mal pago e vê as prestações do crédito subir.
Não terão estudado nos seus cursos o ponto de vista freudiano, que quem se sente remunerado abaixo do que considera o próprio valor, sofre de um problema grave de insegurança e de deficiencia de auto-análise? 
Não tens uma palavra, Deolinda, para quem perde os seus empregos, para quem procura trabalho e não encontra?
E não tens nada a dizer sobre os senhores importantes que vão para a televisão dizer que agora não há dinheiro para fazer investimentos, apesar de ser isso que gera empregos (desde que reprodutivos e úteis, claro)?
O que te choca é ter um curso superior e ganhar mal?
Que mal tem se a tua amiga médica e o teu amigo engenheiro ganharem tanto como o teu vizinho serralheiro ou o teu primo pedreiro?
E se isso acontecer porque o bolo total do rendimento afinal é pequeno e não dá para mais?
Que mal terá isso se o bolo for nosso?
Será pequeno mas será nosso, e seremos nós que mandamos nele, no bolo do rendimento e na distribuição equilibrada do rendimento, não aqueles senhores importantes que falam com um ar tão sério na televisão.
Não vamos poder passar férias nas Caraibas, mas que importa se o bolo for nosso?
Este país seguirá dentro de momentos.
Graças a quem trabalha em algo que possa ser exportado ou vendido no estrangeiro, que é o que poderá suportar isto. 

Sabes, Deolinda, cantas bem e os teus músicos tocam bem.
Mas não deixes que o sucesso te estrague.
O teu poema é minimalista e coloquial. 
Não tem mal, mas não é um bom poema. 
Procura quem faça bons poemas ou já os tenha.
Vai ser utilizado na Internet como aquelas mensagens em que se critica tudo, em que todos nos vitimizamos, mas em que não há soluções.
Reivindicar melhoria de remunerações para uma classe média enganada (desviada dos objetivos durante o seu período de formação)e que não conseguiu erguer uma estrutura produtiva saudável para a economia do país, pode colher muitas palmas nos coliseus (porque os ouvintes se sentem identificados com as tuas palavras, porque os seus centros de prazer antecipam o que lhes vais dizer), mas não resolve o problema da produção de bens uteis, dos investimentos reprodutivos e da distribuição equilibrada dos rendimentos. 

Peço desculpa pelas minhas palavras amargas.
Não és a geração rasca nem és parva.
Mas achaste, tu e a tua geração, que a minha estava ultrapassada.
Está, de facto, na sua capacidade de mudar o mundo (onde vão os Beatles e o "Imagine")e na sua energia.
Mas, Deolinda, tu e a tua geração afastaram-se da realidade e acreditaram nas fadas virtuais do poder económico que nos dirige.
Não acredites agora nos mesmos que há 3 anos atrás propagandeavam os mercados desregulados.
Não enfies mais barretes, garota zonza, deixa-me tambem falar coloquialmente.
Vê se votas como deve ser nas próximas eleições e continua a cantar.

4 comentários:

  1. É uma questão de herança. Herdámos o vosso país viciado e os vossos maus exemplos estão à vista. Não nos culpem a nós! Vocês tiveram armas mas deram tiros nos pés, nós andamos à procura da pólvora!
    Agora chamem-nos zonzos, só porque abrimos a boca!
    Canta Deolinda! Canta que eles já começaram a tremer!

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  2. Zonzo é um termo carinhoso, que pode ser utilizado por quem já tem uma certa idade, que também aplaude o que canta Deolinda e que não culpa os jovens de terem sido enganados.
    Faço minhas as suas palavras, canta Deolinda, mas ouve quem nunca quis ter armas, porque como Gandhi dizia, é a não violencia que vence as armas.
    Embora a não violencia tenha dificuldade em vencer quem desde a adesão à união europeia (1985)se fartou de gastar dinheiro mal gasto.

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  3. Cheira-me a provocação ...., confesso sentir a falta das suas provocações sábias, com todo o respeito, não sendo da geração dos Deolinda, confesso a minha ingenuidade, embora ainda quero acreditar que há futuro, apesar do meu contexto social, zonza também não, até por já não ser garota .... e que parva que sou quando olho à minha volta ... para o Mundo ... para os Homens, e quero acreditar que são gente boa, mesmo que não se vislumbre....
    No meu caso, o que me torna especial, é a minha característica, ser grande observadora de fisionomias, olhar nos olhos ... hoje, perdeu-se esse hábito e capacidade para tal, tenho um "faro" especial para "ler" rostos mesmo que isso pouco importe!!!! .....

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  4. Caríssima anónima

    Não é provocação nenhuma da minha parte, e muito menos sábia.
    É só uma provocaçãozinha porque cada um tem a sua maneira de encarar as coisas e a mim sempre me deu para não me levar muito a sério.
    Por iso só posso fazer provocaçãozinhas, não provocações.
    A provocaçãozinha tem a grande vantagem de não dar motivos às pessoas para ficarem zangadas comigo.

    Porque não ganhamos nada em nos zangarmos, mas ganhamos em fazer provocaçõezinhas porque eas puxam pelas pessoas e no meio desse puxar vêm coisas boas.
    Por mais ingénuos que possamos ser, há sim, muito de bom nas pessoas.
    Valha a verdade que a espécie humana também é capaz das coisas mais desagradáveis, mas a verdade é que insistindo as coisas melhoram.
    Vamos insistindo, a Deolinda a cantar, que canta bem (gostava que ela se preocupasse para a próxima com quem perdeu o emprego e precisava que aquele investimento que lhe poderia dar outro emprego fosse para frente), as outras Deolindas a olhar de frente nos olhos e eu a escrever umas coisas...

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