sexta-feira, 28 de outubro de 2011

Don Carlo, de Verdi, no S.Carlos, em outubro de 2011

Representou-se o Don Carlo, de Verdi, sete vezes no S.Carlos, em outubro de 2011.
Uma produção de nivel razoável, que não desmereceria em teatros de ópera internacionais e que honra quem trabalhou para a realizar.
Mas à entrada, um membro do sindicato dos músicos de cena distribuía um comunicado aos espetadores informando que os cortes decididos pelo governo levaram o orçamento a um nivel inferior aos custos fixos de funcionamento.
Quer isso dizer que não há dinheiro para novas produções, e que os espetáculos programados com a necessária antecedencia estão a ser renegociados com os intérpretes e os respetivos produtores.
O comunicado recordava ainda a definição, por lei, de serviço público no caso do teatro de ópera (e da companhia nacional de bailado) :
- acesso a grandes obras
- divulgação de obras nacionais menos presentes nos catálogos discográficos
- apoio à criação contemporanea
Serviço público esse gravemente ameaçado.

Desceu-se assim mais um degrau, depois das decisões da senhora ex-ministra da cultura, de quem o atual diretor do S.Carlos dizia ser uma senhora inspirada, e apesar da gestão dedicada, inteligente e correta das administrações.
Não deverá cair-se na crítica fácil de responsabilização dos trabalhadores e administradores pelos fracassos.
Penso que o atual governo achará que ópera é um diletantismo para elites ociosas, sem capacidade para atrair os públicos que preferem musica pop ou TV de telenovelas, concursos e reality shows.
E que por isso pode deixar cair-se.
De facto, cada récita só pode acolher 900 espetadores e cada produção ultrapassa a receita de bilheteira.
Talvez se pudesse fazer como em New York. É possivel financiar o teatro e, em troca, o nome do contribuinte aparece no programa. E não mecenas exclusivos.
Mas parece que os mecenas estão reduzindo a sua disponibilidade.
Poderia talvez fazer-se alguma receita com a venda das gravações a televisões estrangeiras e ao cana Mezzo.
Mas ignoro se isso vai poder fazer-se.
Donde, para alem de citar Eduardo Lourenço, para quem cultura é quando o homem se liberta da necessidade inadiável de prover a sua subsistencia, ocorre-me parafrasear o padre Américo. É inutil falar de cultura a quem tem o estomago ameaçado.
Embora as récitas populares de ópera no Coliseu estivessem sempre cheias, consta que a tirania do rebaixamento cultural da TV  conduziu a esta situação: a ópera não entra no conceito, esse sim ainda atual, de panem et circenses para desviar  a atenção dos eleitores das dificuldades quotidianas.
Nem parece que os comentadores televisivos ou os fazedores de opinião dos jornais, de papel ou da internet, sejam apreciadores de ópera.
Pelo que, dito de outro modo, a barbárie está a tomar conta do panorama operático em Portugal.
Pode ser que aconteça como na lei dos rendimentos decrescentes. Reduzindo os orçamentos estimular-se-á a criatividade dos cantores, musicos, produtores, e serão organizados festivais com patrocinadores que rentabilizem o esforço.
Mas eu não acredito.
É mais fácil aos bárbaros triunfarem e extinguirem a ópera nacional.
Embora me custe aceitar que não há mesmo dinheiro para termos um orçamento da cultura mais próximo de 1% do orçamento total (isto é, não reconheço credibilidade às pessoas que gerem o orçamento, embora isso não queira dizer que elas digam a verdade nem que a estejam a ocultar)
Quem quiser que apanhe um avião "low cost" para Madrid ou Paris e veja ópera por lá.
Ou apanhe o comboio para Madrid com as carruagens-cama de patente Talgo.
É pena que a barbárie triunfe. O maestro Martin André dirigiu a orquestra muito bem, tranquila e rigorosamente. Fez uma coisa que é raro ver-se. Aproveitou o intervalo para adaptar os trombones de varas às condições humidade e temperatura da sala. E assim a violencia castradora e sinistra do grande inquisidor encheu a sala sem falhas musicais.
É para isto que serve a ópera: para mostrar os constrangimentos limitadores nas relações humanas, como a opressão ideológica ou religiosa.
Para isso se ficcionou a realidade histórica (Don Carlo era doente psiquiátrico, de modo semelhante ao seu primo D.Sebastião) e se pôs Don Carlo a cantar pela liberdade da Flandres oprimida pela cegueira (daí a referencia pelos sindicalistas do comunicado aos cortes cegos?) do seu pai Filipe II de Espanha - viva la libertá.
E quanto ao avô de Don Carlo, o celebrado Carlos V , que se endividou até à medula com o banqueiro Fugger,  sem grandes preocupações com o seu povo, Verdi e os seus libretistas trataram-no assim: "o seu orgulho foi imenso, o seu erro foi profundo"
É para isto que serve a ópera, para chamar a atenção para que quem tem o poder acha sempre que tem razão.
Orgulho imenso e erro profundo.
Não admira que deixem cair a ópera.
A ópera é subversiva, mesmo quando parece ser contemporizadora e bajuladora do  poder.
Veja-se o caso de Mozart.
Políticos, desconfiem da ópera.
Alguns dos melhores artistas que a humanidade produziu dedicaram-se a ela com muito entusiasmo e humanismo.
É natural  que os politicos, tão expostos ao complexo de Hubris,  não gostem de ópera.

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