quinta-feira, 7 de junho de 2012

Um conto de ficção cientifica - 1700 anos depois

Anaxágoras de Clazomene, século V A.C, Jónia, atual Turquia, perto de Esmirna, dizia que o mundo se tinha desenvolvido pela expansão de uma grande massa inicial, através de uma rotação em espiral.
Não tendo Anaxágoras visto nenhuma gravura moderna de uma galáxia em espiral, nem tocado um telescópio, alguém colocou a hipótese de ter havido um contacto inter-civilizações de cronologia muito diferente

                                                  
                                            "...daqui a mil anos, o homem será feliz?"  -  Tchekov, em "o Tio Vânia"





Mil e setecentos anos depois do nosso tempo já tinha sido eliminado todo o sofrimento físico.

Com recurso à engenharia genética e à tecnologia microscópica biomolecular, e com respeito por todos os povos da terra, sob o controle das Nações Unidas, de modo a não deixar nenhum ser humano fora dos seus benefícios, foram eliminadas as doenças.

Até as psicoses e as deficiências mentais, senão completamente curadas, eram atenuadas com a síntese autosustentada pelo organismo do próprio padecente, recriadora de todos os neurotransmissores e hormonas necessários.

Não foi possível aumentar significativamente a expectativa de vida, tendo as tentativas de prolongamento exagerado conduzido a diminuição da qualidade de vida. Quase toda a população vivia até 92 anos e 3 meses, valor que estabilizara, com muito pequena dispersão.

As crianças eram, na verdade, sujeitas ao regime de aprendizagem automático, embora respeitando elementos das antigas tradições que não colidissem com o objectivo principal, que era o de evitar todo e qualquer sofrimento.

Para isso foi eliminada a maior parte dos vínculos familiares, não sendo necessários os sacrifícios por que as mães passavam para criar os seus filhos. Os procedimentos automáticos e o profissionalismo dos técnicos encarregados de educar as crianças garantiam a liberdade dos pais e a felicidade futura das crianças.

As crianças aprendiam as leis físicas e matemáticas que lhes evitavam os acidentes, até mesmo aqueles que necessitavam da síntese artificial dos neurotransmissores e hormonas, através de modelos de reflexos condicionados que lhes eram implantados no córtex cerebral.

Nunca nenhum homem ou mulher invocou então a necessidade de tratar dos filhos para se privar de um encontro amoroso.

O amor florescia.

Os adultos de então tinham em criança aprendido a abandonar imediatamente qualquer ideia ou acção que desagradasse a outro.

O conceito de competitividade e de luta pela sobrevivência tinha sido ultrapassado e era considerado um primitivismo próprio dos selvagens que só existiam então nos arquivos de história.

Não havia por isso exploração abusiva dos humanos pelos humanos nas unidades de produção.

Sempre que surgia uma nuvem num relacionamento amoroso ela era dissipada com concessões mútuas ou então, verificada a perda do élan por um dos dois, era com brevidade iniciado relacionamento amoroso diferente, com outros parceiros, permanecendo doce a recordação do que terminava.

Pareceria aos nossos olhos, que só vivemos no nosso tempo, que a humanidade vivia então no Paraíso, até porque todas as religiões, quer pregassem ou não o Paraíso, tinham sido abandonadas com naturalidade e sem grande resistência dos seus eunucos dirigentes, à medida que a humanidade se libertava do sofrimento e aumentava a sua capacidade de utilização dos arquivos da sabedoria.

Tinha terminado o ciclo de igualização mórfica dos sexos que se iniciara no nosso tempo. No início do ciclo o homem era mais alto e forte do que a mulher, porque nos tempos antigos esta tinha seleccionado sistematicamente os parceiros maiores e imposto comportamentos monogâmicos, pelo que os homens mais pequenos não conseguiam transmitir os seus genes.

Compensando e eliminando a lei da competitividade, foi possível durante esses 1700 anos igualizar os sexos. Homem e mulher eram agora iguais em força e tamanho, e os comportamentos monogâmicos tinham muito poucos seguidores, embora ninguém se sentisse ofendido quando testemunhava a sua prática. Começava até a desenhar-se uma tendência para o hermafroditismo, confirmando assim o mito dos antigos gregos, perfeitamente realizável com a tecnologia desses dias, espelhando o que desde há muito se observava nalgumas espécies.

Foi ao fim desses 1700 anos, depois dos nossos tempos, que tudo acabou.

A humanidade previu com rigor e antecedência a grande colisão com o cometa.

Reuniu em cápsulas, o mais possível resistentes, todos os arquivos da história de todos os povos, os genes e células germinais não só do homem como de todas as espécies. Preparou expedições maciças para o planeta mais próximo, Marte, e tentou fugir à destruição.

Porém, não era um cometa vulgar.

Vinha dos confins das galáxias, onde permanecera oculto nos seus buracos negros desde o nascimento do nosso sistema solar.

Vinha envolto em radiações nucleares em linhas de força antigravitacionais e antimatéria.

Tudo se perdeu. Todos os arquivos de toda a história da humanidade se perderam.

Tudo, menos algumas moléculas com átomos de elementos fundamentais para o recomeço da vida, na sua forma mais simples, mas vida.

Tudo ia recomeçar em Marte, agora de forma diferente, e sem nenhum vínculo com a realidade vivida pela humanidade na Terra.

876 milhões de anos depois, uma forma diferente de inteligência, com órgãos de visão diferentes e em posição diferente relativamente ao homem e à mulher terrenos, com a superfície contentora do seu organismo muito mais resistente do que a nossa pele, com rituais estranhos de acasalamento e comportamento sexual, aliás com mais que dois sexos, já contemplava os restos do planeta Terra com emoção, com a angústia de nada saber sobre o que aqui se tinha passado, e interrogando-se.

Tudo recomeçava.

Revejo os cálculos do tempo ainda disponível para o sol fundir os seus átomos gerando a energia calorífica de que os planetas vivos necessitam: 5.000 milhões de anos antes de se precipitar no arrefecimento lento e no repouso absoluto.

Vai assim a nova humanidade ter tempo de evoluir segundo os seus próprios caminhos, depois dos 876 milhões de anos que nos separam.

Tenho dúvidas que consigam chegar a seres que atraiam tanto os mais chegados como alguns que conheci, mas certamente que desenvolverão seres interessantíssimos.

Prolonguemos a ficção, imaginando que a evolução nos últimos 1.700 anos da nossa humanidade tinha sido num sentido peculiar.

A mulher desenvolveu a sua tendência para destruir sistematicamente os seus parceiros. É isso que se verifica por exemplo com a espécie das aranhas. O macho é mais pequeno do que a fêmea porque esta prefere os mais pequenos para tentar devorá-los após a cópula e assim ter energia para a sua postura. Neste caso são os machos maiores que não conseguem reproduzir os seus genes.

Imaginemos então que nos próximos 1700 anos a estatura da mulher vai progressivamente igualando a do homem e, continuando o processo de destruição paulatina do parceiro e inibindo por consequência os genes dos machos maiores de se reproduzirem. Chegaremos à data da colisão fatal com o cometa com a estatura das mulheres superior à dos homens. Más notícias para os fabricantes de sapatos de salto alto.

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