segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Thaïs, uma ópera a dedicar ao senhor primeiro ministro



Nota prévia – Como levar o governo atual a mudar de opinião? A aceitar os pontos de vista dos cidadãos que fizeram contas, calcularam os malefícios dos juros que foram fixados e propuseram medidas como as taxas sobre transações financeiras e sobre os movimentos do  multibanco, como o alargamento do prazo de pagamento e a redução dos juros e das comissões? Como resolver o conflito que parece insanável da dificuldade em discutir sobre dados concretos e chegar a uma decisão participada independente das opções politicas dos cidadãos? Como combater sem violencia os fundamentalismos entrincheirados?
Como levar o primeiro ministro e o seu ministro das finanças a aceitar pontos de vista diferentes?
Insistindo nas criticas, por mais evidentes que sejam os cálculos fundamentadores e os indicadores económicos, só parece até agora terem por efeito reforçar a teimosia dos senhores governantes.
Apelar ao sentimento do bem comum nada resolve, que eles até fundamentam as medidas que tomam com esse bem comum.
Então pensemos em formas subrepticias de os levar a mudar de opinião. Como repteis coleantes  ocupando posições dominantes na estrutura do pensamento.


Thaïs, ópera de Jules Massenet, em versão de concerto no S.Carlos (para ficar mais económica), em dezembro de 2012.
Uma das poucas récitas deste ano, depois do desarticular lento e sádico do principal teatro de ópera do país (não se sabe se em 2013 haverá espetáculos de ópera no S.Carlos), iniciado ainda no tempo do ministério da Cultura do anterior governo.
A ópera poderá ser um espetáculo elitista (custos demasiado elevados para tão poucos espetadores) , mas é uma forma de arte em que convergem as capacidades de expressão dos seres humanos.
Por isso pode ser um espetáculo popular, com aumento dos espetadores e difusão televisiva; pode ser  revolucionário, porque trata de assuntos que dizem respeito Às pessoas.
E como tal, por poder ser revolucionário, há muito que o camarote principal do S.Carlos não vê nem o presidente da República, nem o primeiro ministro.
Não se dão bem com a ópera (recordam-se do ar enjoado dos ministros do atual governo quando foram obrigados a comparecer num concerto sinfónico no palácio da Ajuda? Como devem ter sofrido).
A ópera pode ajudar a combater a incompreensão entre culturas diferentes (“A morte do senhor Klinghoffer, de John Adams), a desumanidade dos oligarcas da finança (Banksters, de Nuno Corte Real) ou da hierarquia religiosa (Don Carlo de Verdi).
A ópera não interessa a este governo.

Mas eis que, assistindo à Thaïs, reparo que as semelhanças da ação do herói com a do senhor primeiro ministro são muito grandes.
Por isso julgo de se lhe dedicar a apresentação desta ópera no ano de crise de 2012.

Antes de mais, o barítono no papel de Athanael é fisicamente parecido com o senhor professor João César das Neves, que nas suas crónicas no DN vem defendendo a politica do senhor primeiro ministro, chegando ao ponto de afirmar que Passos Coelho e o senhor ministro das finanças estão a tentar curar uma doença que não geraram (é verdade que não geraram a doença; os gastos públicos com a educação do senhor ministro, referidos por ele próprio, são desprezáveis perante o défice, e os fundos europeus conseguidos pelas empresas de que o senhor primeiro ministro foi anteriormente administrador ou consultor também não terão tido impacto significativo no défice; mas estarem a curar a doença parece uma afirmação mal fundamentada; as tentativas de cura da hipertensão com ventosas e sanguessugas às vezes também resultavam, quando não sobrevinha uma anemia; melhor dizendo: não parece bem o senhor professor João César das Neves dizer que a doença resulta da acumulação da divida externa nos últimos 15 anos, quando o governo do senhor professor Cavaco Silva aumentou excessivamente a despesa pública com o DL 353-A/89 para ganhar as  eleições de Outubro de 1991, o que foi há  mais de 15 anos; também não fica bem sabermos que a divida externa total é de 386 mil milhões de euros e conhecermos a composição da divida externa publica, mas desconhecermos onde foi utilizada, por tipo de despesa, a divida externa privada).
Apesar das semelhanças físicas, o papel de Athanael adequa-se melhor ao do próprio senhor primeiro ministro.
A ação passa-se no século III DC em Alexandria.
Quando me falam neste local e neste tempo, lembro-me logo de Hipatia e do filme Agora (nome grego para o fórum, centro de decisões da cidade) , com Raquel Weisz, que descreve a tomada do poder por grupos de monges cristãos fundamentalistas inimigos do conhecimento cientifico helenista. Estes sacrificaram Hipatia (o senhor professor João César das Neves responderá com o martírio de Santa Apolónia, padroeira dos dentistas, num confronto desigual porque Hipatia é uma personagem histórica com testemunhos de fontes diversas e Apolónia não).
Lembro-me também do decreto do imperador Teodósio, proibindo irrevogavelmente a escrita hieroglífica (este é um tema interessantíssimo: perante a questão da historicidade das principais figuras fundadoras do cristianismo, faltam fontes contemporâneas dos acontecimentos que sejam historicamente validadas e que confirmem a historicidade das figuras; mas pode colocar-se a hipótese de ter sido a corrente ortodoxa da religião crescente que numa fúria depuradora tenha eliminado todas as referencias históricas não compatíveis com a ortodoxia).
A ópera Thaïs não foca a luta dos monges para impor a sua religião em expansão.
Athanael é um monge cristão cenobita que pede autorização ao seu superior para ir salvar a alma de Thaïs, a mais famosa cortesã de Alexandria, responsável pela dívida pública, perdão, pela devassidão e dissipação que se vivia em Alexandria.
Entre parênteses, excertos do libreto de Luís Gallet, sobre o romance de Anatole France.
(o meu coração está cheio de amargura…a cidade entregou-se ao pecado! Uma mulher, Thaïs, é fonte de corrupão! Por causa dela, o inferno governa os homens.)
O superior bem lhe diz para não se meter nisso (meu filho, não nos misturemos com as pessoas do mundo), mas Athanael é teimoso, convenveu-se de que foi incumbido de uma missão salvífica e quer curar a economia, perdão , Thaïs, com uma dieta rigorosa de orações e austeridade de vida.
(Ensinar-lhe-ei o desprezo da carne, o amor pela dor, a austera penitencia)
Thaïs, como sacerdotisa de Vénus, ainda lhe pergunta como pode ele acreditar no que diz
(que triste loucura te faz fugir ao destino de amar e de conhecer; quem te cegou assim?)
Porem, talvez que a cortesã estivesse já doente. A medicina da altura não obtinha grandes sucessos. Ou, hipótese malévola, talvez que os monges bem organizados lhe tenham incendiado a casa de tolerância e perseguido com atentados os clientes de maiores rendimentos.
Thaïs não resistiu ás modulações da voz do barítono e, temerosa das punições da vida eterna e crédula nas promessas de felicidade na outra vida, deixa-se convencer pelo monge. Depois de uma ultima hesitação e da célebre meditação de Thaïs (oiçam no Youtube)


decide partir com ele para um convento de freiras no deserto.
(Não muito longe daqui há um mosteiro onde as mulheres vivem como anjos em perfeito recolhimento…lá encerrar-te-ei numa estreita cela até à libertação divina)
Mais uma vez se vê um caso em que as vítimas de uma ideia acabam por ser as suas melhores defensoras.

Só que depois de a deixar, Athanael cai irremediavelmente apaixonado pela senhora e muda de ideias.
Corre ao convento mas a economia, perdão, Thaïs estava mesmo doente e a intervenção anterior de Passos Coelho e Vítor Gaspar, perdão,de Athanael só veio agravar a doença.
Em vão Athanael protesta o seu amor carnal junto de Thaïs
(só me recordo da tua beleza mortal… desta sede insaciada que só tu saberás apaziguar… menti…o céu, nada existe… nada é verdade que não seja a vida e o amor entre as criaturas… eu  amo-te… diz-me, vou viver, tu pertences-me)
Mas Thaïs só lhe responde, 
(encanta-me o som das harpas douradas…)
E morreu…
Deste modo, embora tardiamente, Athanael descobriu com a morte que há mais vida para alem da austeridade, que as aspirações e os direitos  humanos têm de ter prioridade sobre os interesses financeiros.
No intervalo do espetáculo, entre o 2º e o 3º atos, um espetador transmitia por telemóvel as suas impressões enquanto dava largas passadas no salão nobre do S.Carlos:
"Tens de compreender, isto na vida é assim, há insanidades, há fluxos para um lado e para o outro..."

Interessante, não é?
Ver como os autores, no ambiente moralista do fim de século XIX, deixam o herói expor a sua ortodoxia religiosa para no fim lhe dar a volta a 180º, fazê-lo mudar completamente de opinião, e já sem remédio.

Interessante imaginar que o barítono Athanael é o primeiro ministro do atual governo, que Thaïs é a economia portuguesa sujeita à austeridade redentora com a crença num futuro melhor (quem te cegou? Hayeck? Friedman? Reagan? Thatcher?).
Que o seu superior Palemon possa ser o seu antigo chefe Ângelo Correia, a pedir-lhe para não se meter em trapalhadas.
Que pode chegar um momento em que as evidencias levam mesmo uma pessoa a mudar de opinião, e lá se vai a determinação obssessiva.

Que diabo, por que cargas de água os monges fundamentalistas não se sentam à mesa com quem não pensa como eles e com quem conhece as questões,  e discutem formas de organização de unidades de produção de bens e serviços úteis para que as pessoas possam beneficiar das suas potencialidades aqui na vida real, em vez de pregar moralismos redentores ?

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