quarta-feira, 4 de junho de 2014

Novas do corte dos complementos de reforma

Numa amena manhã de junho descem a rua de S.Bento talvez 400 reformados do metro e da Carris.
A reporter que entrevista o colega ao meu lado ouve da boca dele que é uma injustiça que nos estão a fazer, uma insensibilidade de quem não imagina o que é vermos o nosso rendimento reduzido 50%, depois de nos terem pressionado a reformar-nos, para a empresa reduzir os encargos com pessoal.
A jovem reporter nada diz, limita-se a estender o microfone, mas ou  me engano muito ou consigo ler o seu pensamento, sob a cabeleira loura de cabelos escorridos e compridos, cingidos pelo aro dos auscultadores: "eu sou jovem e serei sempre jovem, tenho energia e a minha energia permitir-me-á sempre encontrar trabalho para fazer, sou esperta, competitiva e tenho iniciativa, nem sequer sou como a mulher a dias que fica muito contente quando recebe 5 euros numa hora sem que ninguem desconte para  a segurança social; e também não sou como aquela rapariga educada mas que tem uma doença crónica que a impede de trabalhar todos os dias e que vive na miséria; estes reformados são uns privilegiados que perderam um complemento de reforma que, só ele, era mais do que a reforma da  maioria dos portugueses".
E assim a jovem reporter seguirá animada com a sua reportagem para a sua televisão e dirá depois aos telespetadores que os reformados protestam porque o tribunal constitucional, por 7 votos contra 6, autorizou o governo a manter os cortes dos complementos de reforma.
Não dirá que existe um contrato com vários anos que definiu a obrigação da empresa nesse pagamento.
Não dirá que basta dar uma volta pela cidade e ver o resultado do trabalho, há anos, dos que agora são velhos.
Não pensará sequer que construir metropolitanos e mantê-los a funcionar em condições de segurança exige competencias e custa dinheiro.
O seu cérebro jovem já estará formatado pela escola de Chicago que tudo é suscetível de redução de custos de produção.
Até o diretor da IATA vem dizer que as companhias áereas têm de reduzir os custos laborais, não se importando que os passageiros corram os riscos associados à insatisfação dos pilotos e ao abaixamento do seu nível de qualificações.
O maquinista do metro de Nova Iorque que descarrilou em Stuypen Duyvel estava a medicar-se por conta própria, porque as consultas médicas são caras e porque a empresa poupa nos custos da sua medicina laboral. O medicamento contra a obesidade que tomava era incompativel com a condução de máquinas e ele sofreu um lapso de atenção. A inexistencia de um sistema automático de controle de velocidade e um projeto imperfeito de material circulante (veiculo da frente não trator) fizeram o resto. Como explicar as medidas de economia de custos de produção aos familiares dos mortos? Os custos das reparações foram inferiores ou superiores aos custos das medidas que evitariam o desastre?
Circulam os comboios do metro de Lisboa, atualmente, com a travagem eletromagnética fora de serviço (patins que se "agarram" aos carris quando é desencadeada a travagem de emergencia). Alguns dos velhos que desceram a rua de S.Bento orgulham-se de terem colaborado na colocação em  serviço desse sistema de travagem de emergencia, há mais de 40 anos. A experiencia ganha foi utilizada pelo fabricante francês nos seus fornecimentos aos  metropolitanos da America do Sul e de Paris.
Para manter a segurança de circulação, o metro de Lisboa, com a travagem eletromagnética inoperacional, teve de reduzir a velocidade máxima de circulação de 60 para 45 km/h (para manter as distancias de travagem) e confiar na atenção dos maquinistas para não ultrapassarem os sinais vermelhos nem a velocidade limite.
Que diria a jovem reporter de cabelos escorridos se o concessionário do seu carro lhe enviasse uma carta dizendo que por razões de segurança, por o ABS do seu carro estar fora de serviço, as distancias de travagem em condições de emergencia estavam maiores e por isso teria de limitar a sua velocidade 25%?
Mas talvez isso não a  preocupasse, porque a próxima reportagem será entusiasmante, talvez  a cobertura de um grande festival de musica para a juventude ociosa (Portugal tem uma taxa de abandono escolar da população entre os 18 e os 24 anos de 19%, aproximadamente dupla da média europeia) ou desempregada (36,1% ou 141.000 jovens, de acordo com as estatísticas oficiais de abril de 2014), patrocinado por  marcas de cervejas e exportador de capitais para trazer grandes "bandas" estrangeiras.
Mas não haverá, com a crise, apesar do crescimento de 44% da venda de automóveis ligeiros,  dinheiro para pagar os complementos de reforma do metro e carris, nem para subir as pequenas reformas da maioria dos reformados portugueses.
Claro que sendo assim, não funcionando as instituições de forma regular por não haver dinheiro, se poderia negociar entre devedor (metro e carris) e credores (reformados) uma reestruturação do contrato, por exemplo, redução do montante anual de 20 para 15 milhões de euros, repartindo os cortes de modo a prejudicar menos as remunerações mais baixas e remunerando os 5 milhões em falta com certificados de aforro convertíveis apenas daqui a 10 anos.
Mas não, entende o governo cortar simplesmente, sem negociar.
Por isso o colega entrevistado dizia para a reporter de cabelos escorridos, que assim só com ações de penhora, sendo certo que o metro anda a vender património imobiliário, e que em Sete Rios, por exemplo, cedeu as instalações às empresas de camionagem e não recebe renda. Se cada uma das cerca de 200 carreiras diárias pagasse 20 euros, e cada um dos cerca de 500 lugares de estacionamento do espaço disponivel pagasse 5 euros por dia, teriamos uma receita anual de 2,6 milhões de euros. Não daria para pagar todos os complementos, mas já ajudava os mais necessitados e não prejudicava as contas correntes do metro.
As empresas de camionagem é que não gostariam e correriam a fazer queixa ao seu secretário de estado dos transportes, que possivelmente lhes perguntaria porque não querem tomar de concessão o metro e a Carris, mesmo que o Estado ficasse a perder, que o importante é cumprir a ideologia da escola de Chicago, gastar o que for preciso com as privatizações, para poupar com elas o que for possível (melhorando a eficiencia, claro, mesmo que para isso corramos os riscos com a degradação de condições de segurança).
Podia ser uma reportagem interessante, para a jovem reporter de cabelos escorridos, mas o desfile continuou, por entre as lojas de antiguidades da rua de S.Bento, até à Assembleia da Republica, para visita aos grupos parlamentares da oposição, e perdi-a de vista.
Foi quando um turista francês de calções e com um cãozinho vivaço pela trela me perguntou em inglês o que era a manifestação e se eu lhe podia indicar o caminho para Alfama.
Temos de tentar reduzir o defice com as receitas do turismo e ser simpáticos para os turistas. De modo que em francês lhe expliquei a questão  dos complementos e como se ia para Alfama. Ele compreendeu porque era funcionário público reformado e que gostava de vir a Portugal, na sua autocaravana, não para beneficiar das isenções fiscais porque não era rico (só os ricos devem ser poupados nos impostos, não os comuns dos mortais; ironizávamos, claro, de forma cúmplice), mas porque os portugueses são simpáticos.
Que satisfação ouvir isso, quando aquela manifestação era a evidencia da incompetencia de um governo (não vale a pena argumentar com incompetentes que não percebem os negócios e o funcionamento técnico das coisas) e da insensibilidade dos fundamentalistas da redução dos custos de produção e do estímulo do desemprego para contenção da procura, das importações e dos preços.
Se as instituições não funcionam regularmente, de modo aos contratos serem cumpridos, então a Constituição prevê que o governo possa ser demitido e substituido por outro de acordo com os resultados eleitorais (que o mesmo é dizer, com a máxima representação possivel das sensibilidades dos portugueses, sem maiorias atrofiadoras das minorias).
Mas o francês estava contente com os portugueses, que eram amáveis (ça depend, ainda lhe disse eu), que não eram invejosos dos vizinhos e que deixavam estacionar a sua autocaravana em frente das suas casas, e até o convidavam a pô-la à sombra dos seus jardins.
Bon sejour au Portugal, au revoir.



Nota:  a fundamentação governamental para o corte dos complementos de reforma foi a de que as empresas de transportes têm resultados negativos. Todos os metropolitanos têm resultados negativos se considerarmos os custos de financiamento que devem ser incluídas nas despesas públicas.
Alem disso, é internacionalmente normal uma taxa de cobertura das despesas operacionais pelas receitas entre 50 e 70% (o que poderá considerar-se como um comparador internacional para avaliar os desempenhos de cada metro), como é o caso do metropolitano de Lisboa.
A existência de uma rede de transportes como o metropolitano tem benefícios indiretos por ser um fator de produção das empresas que serve, disponibilizando a presença da mão de obra na empresa. Tem também um impacto no turismo e na redução da importação de combustíveis fósseis devido à maior eficiencia energética na produção de passageiros.km quando comparado com o transporte individual e rodoviário.
Esses benefícios estão do outro lado do balanço quando se fala em resultados negativos.
 Uma análise de custos-benefícios contabiliza ainda do lado dos benefícios o custo das consequencias dos acidentes evitados pelos custos das medidas de segurança.
A eventual correção da atribuição ao metropolitano de indemnizações compensatórias  inferiores, por passageiro.km, às atribuídas a empresas privadas reduziria também os resultados negativos.
Outro fator que contribuiu indevidamente para os resultados negativos do metropolitano foi, depois da expansão da rede do metro em 2004 e do consequente aumento da quota de passageiros.km produzidos na área metropolitana, ter-se mantido a  repartição de receitas decorrente dos inquéritos de 1989, reduzindo assim as receitas em cerca de 6 milhões de euros por ano.
Por tudo isto, será abusivo pretender justificar os cortes dos complementos com resultados negativos.
 Há ainda a considerar que existe legislação europeia que protege os reformados beneficiários de complementos de reforma contra a insolvencia das respetivas empresas (lá está o principio da confiança nos contratos).

Relativamente a uma eventual penhora da empresa por não cumprimento contratual, há a considerar, para alem das rendas das rodoviárias e estacionamento de autocarros no PMOI e venda dos imóveis, o aluguer de fibra ótica e a  publicidade.









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