quinta-feira, 7 de julho de 2016

Depois do fim da linha - Estratégia portuguesa de ligações de mercadorias à Europa

Em janeiro de 2015 escrevi este post manifestando o receio de que os fundos comunitários disponibilizados pela união europeia para investimentos em infraestruturas iriam ser desperdiçados, o que para mim seria uma espécie de fim da linha:
http://fcsseratostenes.blogspot.pt/2015/01/o-fim-da-linha.html

Infelizmente confirmou-se a previsão. Os sucessivos governos têm considerado que se gastou demais em infraestruturas. O que não é totalmente verdade, como penso ter demonstrado no referido post (gastaram-se mais fundos comunitários em infraestruturas de telecomunicações do que em autoestradas). E não é absolutamente verdade no que toca à carência de infraestruturas ferroviárias.

O meu amigo Luis Cabral da Silva, que fez a maior parte da sua vida profissional ao serviço do transporte ferroviário de longa distância, deu-se ao trabalho de analisar a lista de cofinanciamentos da união europeia correspondentes à 2ªchamada do mecanismo CEF (connecting european facility).

A insignificância dos cofinanciamentos concedidos a Portugal, nomeadamente por insuficiência das candidaturas (ausência de ante-projetos e deficiente fundamentação) contrasta com o dinamismo dos países bálticos e do leste da Europa.
Confirmou-se assim o diagnóstico de Daniel Gros referido no meu post: "Não é por falta de financiamento que não se executam as infraestruturas energéticas e de transportes de ligação à Europa, é por oposição dos grupos económicos que beneficiam do estado atual das coisas".


Eis o trabalho de Luis Cabral da Silva:





Atribuição dos Fundos CEF – Connecting Europe Facility

1 - De que Fundos se trata ?

Na passada 2ª-feira, dia 20, a UE divulgou a lista de projectos cujas candidaturas foram apresentas pelos vários Países que concorreram à 2ª chamada no âmbito do CEF- Connecting Europe Facility 2014-2020 e que lograram obter co-financiamentos europeus.
Dos mais de 26 mil M€ iniciais, cerca de 11,7 mil M€ destinavam-se exclusivamente para os Países candidatáveis aos Fundos de Coesão (Portugal, Malta, Chipre e os ex-Países de leste).  Para todos estes Países, o co-financiamento, que é a fundo perdido, pode chegar aos 85 %, desde que a sua aplicação corresponda aos objectivos das redes transeuropeias, incluindo (e principalmente) os seus 9 Corredores, em que Portugal será servido pelo Corredor Atlântico através do ramo norte/ (Aveiro-Vilar Formoso) e do ramo sul (Sines-Lisboa-Poceirão-Caia).


                                                         Os 9 Corredores transeuropeus (rede RTE-T)

Na 1ª chamada, que teve lugar 1 ano antes da actual 2ª chamada, os grandes beneficiários foram parte dos Países de leste, garantindo co-financiamentos entre os 80 e os 85 %. Portugal foi contemplado com uns míseros 20 % para o troço ferroviário Évora-Caia, que continua na estaca zero.
Nesta 2ª chamada, os Países do Fundo de Coesão concentraram 5600 M€ de um total de 6700 M€ disponíveis para todos os Países. Desta bvez e por ordem decrescente dos valores concedidos, os maiores beneficiários foram a Polónia, a Hungria, a Rep. Checa, a Roménia e a Eslováquia.  
Portugal apenas garantiu 423 M€ para 17 dos 32 projectos a que se candidatou.

Não haverá uma 3ª chamada para os Fundos de Coesão.  O que não foi atribuído no conjunto das 2 chamadas, reverterá para o Fundo Geral a que todos Países têm acesso e em que o limite de co-financiamento se fica pelos 40 %, salvo para estudos, em que o limite é sempre de 50 %.  


2 - Que projectos/obras portugueses foram contemplados ?

Os 17 projectos portugueses agora aprovados para co-financiamento europeu são os seguintes :
a)  Através do Fundo de Coesão
a.1 - Projecto SESAR (gestão do espaço aéreo) - 14.556.609 €jn
a.2 - Segurança aérea (Eurocontrol) - 382.700 €
a.3 - Navegação aérea (Spice) - 11.804.689 €
a.4 - Melhorias no sistema ibérico de LPG (Gás) - 1.071.000 €
a.5 - Navegabilidade do Douro (informação) - 2.322.672 €
a.6 - Navegabilidade do Douro (acessibilidade sustentável) - 8.575.225 €
a.7 - Corredor Sines-Setúbal/Lisboa-Caia (estudos) - 2.494.750 €
a.8 - Melhoria da eficiência do aeroporto de Lisboa - 1.457.034 €
a.9 - Linha da Beira Alta (estudos e obras) - 375.860.046 €
a.10 - Estudo da rede de carga rápida de veículos eléctricos - 1.282.381 €
b)  Através do Fundo Geral
b.1 - Navios mais seguros (prevenção de acidentes no oceano) - 96.250 €
b.2 - Projecto SESAR (implementação do cluster 1) - 1.533.450 €
b.3 - Projecto SESAR (implementação do cluster 2) - 119.750 €
b.4 - Projecto AUTOCITS (veículos autónomos) - 270.075 €
b.5 - Projecto CIRVE (veículos eléctricos) - 91.152 €
b.6 - Plano geral para OPS (uso de energia eléctrica nos portos) - 461.402 €
b.7 - Porto de Leixões (melhoria das acessibilidades) - 750.000

A ficha na seguinte ligação, divulgada pela UE/CEF em 20/7, resume a distribuição destas verbas e descreve os projectos correspondentes:
http://ec.europa.eu/transport/themes/infrastructure/ten-t-guidelines/project-funding/doc/cef/2015-cef-country-fiche-pt.pdf


3 - Efeitos previsíveis

- Os projectos a.1, a.2, b.2 e b.3 têm a ver com o céu único europeu e com a melhoria da gestão desse espaço aéreo, permitindo maior segurança, redução de tempos perdidos em terra e no ar e, consequentemente, uma redução do consumo de combustível que poderá ultrapassar os 10 % nos casos de maior congestionamento.  Envolve alguma cedência da autoridade sobre o espaço aéreo de cada País, o que tem introduzido algum atrazo.
O Brexit pode vir a excluir a Grã-Bretanha deste projecto, mas isso não deverá afectar Portugal ;
- Os projectos a.5 e a.6 visam o transporte do minério de Moncorvo para Aveiro, o que envolve barcaças com capacidade de navegação marítima e simultaneamente compatíveis com a navegabilidade no Douro.  Ainda não foi encarado o transporte ferroviário directo para o centro da Europa, possível com a construção de uma linha ligando à linha da Beira Alta, desejavelmente em Vila Franca das Naves, o que igualmente permitiria o transporte ferroviário até Aveiro ;
- O corredor Sines/Lisboa/Setúbal/Caia (verba a.7) continua em "estudos", desconhecendo-se o que terá acontecido às verbas anteriormente já recebidas e apesar de Espanha já feito notar que este é um eixo que considera prioritário ;
- Presume-se que a melhoria da eficiência do aeroporto de Lisboa queira significar o prolongamento do "taxi-way" da pista mais longa, eliminando o actual condicionamento proveniente do atravessamento da pista principal ;
- A verba a.9 visa a correcção de algumas limitações na linha da Beira Alta, mas não resolve as limitações existentes na sua continuidade em Espanha nem nos restantes troços nacionais, incluindo obrigar a um percurso demasiado longo relativamente à região norte.  No fundo, pouco mais se verificará do que a recuperação do seu estado de degradação atribuível a uma conservação insuficiente, devido à escassez de verbas.  Acresce que este co-financiamento europeu, na ordem dos 64 %, implica um grande esforço financeiro nacional para efectuar o pretendido e que poderá inviabilizar todo o projecto, atendendo ao limitado benefício que ele proporcionará ;
- A verba b.7 visa a melhoria das acessibilidades rodo e ferroviárias do porto de Leixões, sendo de esperar que isso inclua a integração directa do actual feixe ferroviário na actividade do porto, acabando assim com a rede que separa física e funcionalmente a estação ferroviária do parque de contentores, o que implica que qualquer contentor proveniente ou destinado ao comboio tenha de ser transportado de camião durante vários quilómetros para ser transferido entre o comboio e o parque de contentores (cerca de uma dezena de metros em linha recta, eliminando a rede existente).
Quem não acreditar, pode lá ir ver :  Para colocar em cima de um comboio um contentor chegado a Leixões, tem que se alugar um camião para o carregar, transportar durante alguns quilómetros até sair da área portuária e depois fazer um caminho idêntico para trás, para o trazer para a estação de comboios, que está logo ao lado do parque de contentores, mas separada por uma rede. 

Os restantes projectos estão ainda na sua fase inicial ou não têm impacto directo significativo na nossa competitividade.

4 - Resumindo

Mesmo que se arranje dinheiro para completar estes projectos, Portugal continuará a ser uma ilha ferroviária, devido a manter a bitola ibérica (enquanto a Espanha está em fase avançada da implementação da sua rede de bitola europeia), o que significa que as trocas comerciais com o centro da Europa vão implicar ou um transbordo ferroviário para a rede espanhola de bitola europeia (operação de custos significativos) ou a entrega e recepção directa por via rodoviária de todas as mercadorias nos portos secos de Badajoz ou de Salamanca, também com custos adicionais relativamente ao que custaria o transporte ferroviário directo desde Portugal até aos Países de destino (e vice-versa), resultando que o custo do transporte de e para o centro da Europa, já de si penalizante pela distância a que nos encontramos, é agravado pela descontinuidade ferroviária que vai continuar a haver entre Portugal e Espanha, tanto nas importações como nas exportações.
  
O trajecto rodoviário de longo curso está já a começar a ser taxado seriamente nalguns Países, para reduzir a perigosidade e o congestionamento nas estradas, para evitar a importação de combustíveis fósseis e por razões ambientais, tudo isto previsto no Livro Branco dos Transportes da UE (2011). Logo, não é sustentável.  Mas continua a ser  a melhor solução para a distribuição local e regional, aquilo que também se chama “the last mile”.
Ora isto, num País em que o ambiente fiscal para as empresas é fortemente penalizante e até instável e em que a energia é uma das mais caras da Europa, prejudica seriamente a nossa competitividade relativamente à Europa, que é o nosso principal mercado.
Nestas condições, é de esperar que dificilmente alguém queira vir investir em Portugal, tendo muito melhores condições para o fazer em Espanha ou noutros Países. Mas pior ainda será quando as empresas que cá operam começarem a deslocar-se para fora do nosso País, por falta de condições atractivas para a sua actividade.

Dito de uma forma nua e crua, é de esperar que, devido à falta de visão estratégica de várias governações sucessivas, estejamos a caminhar rapidamente para o abismo económico, não se antevendo a possibilidade de um milagre salvador.

   LCS





Depois deste fim de linha, e depois de ouvir algumas apresentações em seminários dedicados aos transportes, de que destaco as realizações da Transportes em revista, penso que já estará definida uma estratégia para as ligações internacionais dos portos portugueses à Europa. Se não definida pelo governo ou por grupos de reflexão, universidades, associações técnicas profissionais, jornalismo especializado, empresas interessadas na exportação, operadores, sindicatos, mas provavelmente definida ou condicionada apenas por operadores em situação de oligopólio (duopólio depois da privatização da CP Carga?), perfeitamente adaptados ao statu quo, incluindo a disponibilidade apenas de bitola ibérica em território nacional (e ligação às plataformas logíticas de Salamanca e Badajoz, cidades de regiões periféricas espanholas cujos portos mais próximos são os portugueses). 
Interessados apenas no transporte ferroviário de mercadorias para os hinterland espanhois  e não no transporte ferroviário para a Europa. 






Com este esquema, o transporte de mercadorias com origem em Portugal fica onerado com os custos de transferência de bitola nas plataformas logísticas. Considerando o custo do frete de um contentor TEU (20 pés) de 1€/km, um frete de 800km e a velocidade média de 60km/h, resulta um custo de imobilização de 50€/h a que se juntará o custo do manuseamento da carga e a taxa de utilização da plataforma. O que quer dizer que os produtos manufaturados de baixo custo serão prejudicados e os materiais em granel ou para manufatura em Espanha menos prejudicados. Curiosamente, uma ligação de muito longa distancia como a ferroviária para a China, com vários transbordos de bitola, a qual neste momento já é competitiva com o transporte marítimo, não será muito prejudicada com as plataformas de Salamanca e Badajoz.
Segundo a minha hipótese, o transporte de mercadorias para a Europa far-se-á predominantemente, após a penalização esperada do transporte rodoviário (a menos que os camiões passem a ser movidos por hidrogénio produzido a partir de fontes renováveis) por via marítima, para os mais de 400 portos do norte da Europa. Completamente desprezado fica o transporte de passageiros em alta velocidade, beneficiando assim, claramente, as transportadoras aéreas, não obstante o transporte aéreo de curtas distancias (600 km) ser ineficiente comparativamente com o ferroviário de alta velocidade.
Pode assim afirmar-se que, quer no transporte de mercadorias, quer no transporte de passageiros, as leis da união europeia opõem-se à situação de oligopólio existentes, o que fundamentaria os projetos como a nova linha Aveiro-Salamanca em bitola UIC, neste momento preterida pelo projeto de renovação da linha da Beira Alta em via única, com o inconveniente de ser uma renovação dispendiosa.

O esquema ilustra a hipótese com o transporte marítimo vindo pelo canal do Panamá (a situação será identica para o tráfego marítimo do Suez ou do Atlantico Sul). Só uma pequena parte será desembarcada ou embarcada em portos portugueses, com destino ou proveniente, para além de Portugal, das regiões espanholas servidas pelas plataformas de Salamanca/Valladolid e de Badajoz/Mérida. 
O tráfego de Portugal de e para a Europa será assegurado por operadores marítimos estrangeiros (o que faz lembrar a solução encontrada no século XVIII para o transporte do ouro do Brasil: frete de navios holandeses). 
A ligação em estrela dos portos espanhois à região de Madrid e da rede espanhola à Europa faz-se já ou está projetada em bitola UIC. Não está representada, por não fazer parte da rede RTE-T transeuropeia aprovada pela Comissão Europeia, a ligação entre o porto de Leixões a Vigo, estando este porto ligado em bitola europeia a Madrid.


Informação complementar:


Interessante gráfico comparativo retirado de http://www.prof2000.pt/users/elisabethm/pagina11/inicial.htm
A instalação de bitola UIC nas ligações a Espanha permitiria aumentar a distancia rentável para o transporte ferroviário quando comparado com o marítimo. A penalização ambiental do transporte rodoviário reduzirá a distancia ótima para os respetivos fretes, recomendando um plano de transição das suas estruturas



Lista de portos espanhois:

https://en.wikipedia.org/wiki/List_of_ports_in_Spain




mapa em formato metro retirada da documentação da união europeia sobre os 9 corredores da rede RTE-T

Perante este desânimo e a evidência da incapacidade de apresentação de candidaturas credíveis, proponho que se solicite à Comissão europeia o auxílio de comissões técnicas para estudar os projetos  e os investimentos necessários para assegurar as ligações ferroviárias à Europa. para mercadorias e para passageiros.  Será mais uma perda de soberania, mas merecida e que se traduzirá por benefício para Portugal.

PS em 7 de julho - Devo esclarecer que a minha proposta não significa que não existem em Portugal técnicos capazes de preparar os projetos e fundamentar os empreendimentos. Apenas as estruturas de poder impedem que eles sejam aproveitados com esse objetivo. Talvez os decisores nacionais dêem mais ouvidos a técnicos estrangeiros, e talvez a solução seja uma equipa técnica estrangeira diversificada enviada pela comissão europeia vir cá ter uma série de encontros abertos aos cidadãos e entidades interessados e depois apresentar as suas recomendações aos decisores nacionais.
PS em  8 de julho - eis uma perspetiva mais otimista e reverencial, mantendo a esperança na linha nova Aveiro-Mangualde (e de Mangualde para Vilar Formoso vai-se às curvas pela linha antiga?) e reconhecendo que para o corredor sul, Sines-Badajoz ainda se está nos estudos:
https://www.publico.pt/economia/noticia/portugal-vai-receber-390-milhoes-para-projectos-de-infraestruturas-1737728

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